quarta-feira, 23 de junho de 2010
continuação do IP (Idiota Plástico)
O carro rolava por ruas escuras até o Galpão de S. Cristóvão. Era intrincado chegar lá. Sou ruim de caminho além do Rebouças. Passavam as luzes brancas dos postes e as vermelhas dos automóveis, enquanto e eu pensava no papo do IP. Aparentemente certo nas suas estocadas, IP falava apenas dos Artistas que não o são, que existem em todo lugar, não apenas na Arte Contemporânea. No Teatro não faltam simbólogos, defensores da liberdade, incompetentes teatrais, chocadores de burgueses e até cenógrafos sem peça.
Todo esse pessoal, por exemplo, que faz o “espetáculo” em vez de fazer a peça, do brilhante Gerald T. à turma que alguém chamou de “quinteto irreverente”(B. Lessa, Possi N., Ulisses, Gabriel V. e o próprio G. Tomas) eram mais ou menos isso, embora talentosíssimos, são alguma forma isso. Na minha opinião não fazem Teatro propriamente dito. Mas daí a dizer que não são artistas vai uma agressão. Tenho certeza que o mesmo acontece no cinema, na literatura etc. A Arte quando é clara, compreensível, diante da qual um homem de bem não precisa franzir o cenho, tende a ser maior, não há duvida. Mas a Arte Contemporânea não se propõe a isso, porra... Enfim eu continuava discutindo como IP. Mas só por dentro porque por fora eu falava com o Zé, precisava falar, sobre a Arte, enquanto rolava o carro:
-“A única coisa da qual se pode acusar a Arte é de não sê-lo.
A Arte, ela salta, melhor que o gato. Por cima da aparência.
E aquele que recebe a mensagem do Artista salta também, por cima do muro sensorial com que está acostumado a perceber o mundo, recebendo o recado no seu eu mais profundo.
Se alguém quem morrer, morrer mesmo de não ter jeito, toque para ele uma música de Mozart, ou mostre um quadro de Renoir, um bom filme... Se isto não salvá-lo, desista. O homem está morto.
É preciso observar com argúcia as relações entre a Arte e o Tempo.
O tempo da Arte é o tempo eterno, o tempo que não é tempo.
A Arte tenta resumir no tempo o funcionamento do mundo.
Pretende entender numa sinfonia, num quadro ou num livro a inteligência do Mundo.
Portanto deseja destruir o tempo, é inimiga do Tempo.
Há algo de francamente antagônico entre a Arte e o Tempo. Se toda a consciência conduz à compreensão de que tudo é movimento, sendo o Mundo puro fluxo... a Arte tenta fixar numa obra estática esta eterna mudança.
Algo existe dentro da contraditória Alma humana que não é Tempo, que
não é fluxo. É a isto que a Arte se refere!
Se o Tempo é realmente um Deus, como frequentemente parece, então a Arte é um movimento de pura rebeldia."
O carro fez uma curva fechada, derrapando pneus, o Zé estava com pressa de chegar, embora me ouvisse com atenção.
“Terá a arte algum valor objetivo?" -perguntava eu. “Ou seu julgamento será sempre subjetivo, sempre dependendo de um “eu gostei” e “eu detestei”. Multidões de filósofos ao longo do tempo debruçaram-se sobre esta candente questão. A arte tem um valor em si, intrínseco, evidentemente. Só porque não me ocorre outro exemplo, Shakespeare é representado hoje, como era há 100 ou 2OO anos atrás, na Rússia, na Suécia, na Indonésia, no Brasil. Shakespeare tem um valor intrínseco. Ele fala com a alma humana, diretamente, não importa em que época e em que lugar.”
Zé agora rodava por ruas que eu não conhecia e avisou que já estávamos chegando.
-“Uma obra de Arte não é boa porque dez pessoas gostam, um milhão ou apenas uma pessoa gosta. A Nona Sinfonia (prefiro pessoalmente o “Concerto para Violino”), a Vitoria de Samocracia, as flores de Renoir, os auto-retratos de Rembrandt, os filmes de Carlitos, a voz do Frank Sinatra e as milhares de obras de Arte que, enfim, permitem um homem viver, em vez de meter uma bala nos córneos... tem valor em si.
Mesmo que ninguém as tivesse visto jamais! Ainda assim seriam valorosas e imortais. São o patrimônio da Humanidade, enquanto a Humanidade existir serão magníficas obras de arte. E quando a humanidade não existir mais, tendo a Terra sido dominada pelas formigas, ainda assim –reconhecerão as formigas- serão magníficas obras de arte. Pois elas se referem ao Universo e a tudo que existe além dele. Enquanto alguma coisa houver, em vez de simplesmente haver nada, elas serão magníficas obras de Arte.
E não creiam que sejam tão raras. E tão difíceis de reconhecer. O homem que reconhece a obra de Arte chama-se o Artista. E tem muito artista por aí. Voce, com tuas nuvens de ferrugem, tua versão 2000 das paredes de Lascaux, é um deles. Toda geração que veio dos anos 60, que envolve nomes como Cilso, Gerchmann, Vergara, Antonio, Antonio Manuel, Barrio, e mais no mínimo duas dezena de outros também. Não é todo dia. mas de vez em quando acontece. E uma vez Artista, como torcedor do Flamengo, sempre Artista.”
O Zé delirava em calmo entusiasmo, como é de seu estilo:
-“Por que onde começa o abstracionismo e termina a figuração? A pintura ela mesma é uma abstração, a Arte é uma abstração, o mundo e a consciencia são abstrações.”
-“Todo delirio é real, este é o melhor modo de pensar, para evitar o psicanalista”-preconizei. Um homem abre os olhos e codifica o mundo. Não sei o que é um girassol. É uma flor esquecida, um pouco obesa e desajeitada, que está ali no jardim em meio a outras, com pessoas passando por perto, indo e vindo. Não sei bem o que é um girassol, mas quando vejo o girassol que Van Gogh pintou, então sim, eu compreendo o que é um girassol..." O grande acontecimento na História da Pintura é sem duvida o advento da Fotografia, que a libera da função documentária e aponta para o abstracionismo como caminho quase obrigatório. Apesar de que a Pintura, enquanto Arte, nunca documentou nada. Ela respondeu sempre a uma eterna inquietação da humanidade, que nos assalta desde pequeninos: será que o que estou vendo é o mesmo que voce vê? O que eu chamo de vermelho, é o mesmo vermelho teu? Tua VISÃO do mundo é igual a minha? É o mesmo mundo que vemos, habitamos, vivemos? São perguntas de criança e de gente grande também. Observando um bom quadro, vejo o que o pintor vê, ou viu, ou quis ver enquanto pintava. Pela Arte, devasso o indevassável outro, penetro no impenetrável do outro. Sei que para El Grego, o mundo era alongado verticalmente, que para Modigliani as mulheres tinham pescoços de girafa e para Cezanne o ar era azul. E assim me sinto menos só.”
-“A arte contemporânea -disse o Zé- ela se propõe uma tarefa nobre. A de trazer para o mundo não a representação de uma coisa existente mas sim algo de novo, que não existia antes. Ninguem precisa entender um quadro. É coisa para os olhos verem. Por que ninguém reclama de que não entende uma musica???"
Chegamos ao Galpão.
Era uma Fábrica abandonada, assustadoramente vasta e, porque não dizê-lo, muito misteriosa. Eu avançava cauteloso por aqueles lugares escuros, o Zé me orientando, enquanto subia escadas e aravessava alpendres em direção ao quadro de luz. Enquanto isso me falava do seu trabalho:
“As vezes recebo um galerista no meu ateliê e me recuso a vender certo quadro. Não está pronto, digo, o galerista discorda. Mas não vendo. O quadro tem primeiro de espantar a mim, não importa que espante os outros. Se não, não está pronto. Também não deixo levar para casa por uma semana para ver se combina com os móveis -você acredita que me pedem isso?
Este galpão eu saí procurando e aluguei para poder fazer meus “monstros comedores de margaridas”, que vou expor no MAM. Era uma velha fábrica abandonada, onde repousam, talvez para sempre, restos de tudo: Pneus, madeiras, grandes galões ou engradados, até restos de desfiles de Carnaval. Coisas sem valor e esquecidas. Animais também, tem aqui, cachorro velho, gato, cabra, até cobra. Também restos humanos. Umas pessoas suadas e sujas, de bernudas e sem camisa, que dormem por aqui. Aparecem de manhã, me pedem 1 real para tomar café, vão no botequim, depois voltam pra cá e ficam por aí o dia inteiro, quase invisíveis... Devem estar dormindo em algum canto.
Também eu fico aqui o dia inteiro, enquanto meus monstros, alguns já pendurados, se formam.
E em dizendo isso meteu a mão no quadro de luz e desceu uma chave.
Tudo se iluminou de repente.
E lá estava eu, no meio do galpão diante das telas penduradas, com cordas e roldanas.
Telas de talvez 5 metros de altura, por 6 de comprimento. Meia dúzia de telas, formando um conjunto realmente enorme, um canto de outro mundo.
Por um momento eu não disse nada, sob o impacto daquela cena, a estranheza da experiência. Este momento se prolongou talvez por minutos, não sei. Os quadros eram muito bonitos e me silenciavam, assim como silenciavam o espaço. Devoravam-lhe o ar. E o pintor continuava a me contar coisas sobre seu trabalho. -“Cada quadro demora mais ou menos 90 dias para ficar pronto. Primeiro estendo a lona de caminhão. Depois coloco sobre ela, em camadas diferentes “a cabeleira”, a lã de aço, que vêm em bobinas que só eu tenho. Aí molho aquilo tudo (água) e espero a oxidação. Espero. Sem saber o que vai sair ali debaixo. Epero 30, 40 dias, dependendo das condições atmosféricas. Espero. Uma espera cega. Então retiro tudo e vejo o que a oxidação fez, o que resultou na lona. Então começo tudo de novo, desta vez exercendo certas escolhas. Coloco mais ali, menos aqui, cubro tudo de novo, de novo a cegueira. E espero o que a oxidação e o Tempo têm para me oferecer. Uns 90 dias depois descubro tudo e penduro. Eis o quadro, sobre o qual depois exerço outras modificações. Eis o quadro, instável, impermanente. O quadro. A espera é muito importante no meu trabalho, fica certamente impregnada nele. De alguma forma meu trabalho é sobre a Espera.
Mas a voz do Zé já soava para mim baixa e distante. Eu não ouvia mais as explicações, não tinha importância, os quadros não deixavam. Eu tinha sentimentos:
Memória, espera, Isolamento, Resto, Sobra, imperfeição, imprecisão ...Eram telas grandes, ou melhor, diante delas eu era pequeno. E me olhavam, abandonadas como todo resto. Os quadros eram a face férrea do mundo, a porta intransponível, a caverna do futuro, a cortina de ferro que impede o incêndio nos Teatros.
E devoravam meu tempo, minha vida, devoravam o meu abandono e o abandono daquele lugar. Súbito entendi o absolutamente título, aparentemente gratuito, que o Zé propunha... Eram monstros bobos. Comendo Margaridas. Margaridas do meu coração.
O Zé tambem estava calado, andava por ali a esmo, conhecia bem o lugar. O silêncio foi quebrado por mim:
-“Parabéns” -eu disse. Zé, é um bom trabalho. Só vendo, eu não fazia idéia. Não só seus quadros são gigantescos. As aventuras da Arte Contemporânea também. Aventura gigantesca...
Vocês são um bando de malucos, artistas, uns melhores, outros piores, mas todos experimentando na border line do ser humano. Brincalhões, sem medo de ser incopreendidos, de ser criticados por um idiota plástico qualquer... Uma turma elegante e charmosa, braviamente tentando livrar-se das teias poderosas do Realismo. Atacando com os dentes tudo que foi sacralizado, indo ao limite do esforço para entrar no perigoso curto-circuito com o inconsciente. As vezes acertando, na maior parte das vezes errando, mas sempre, tentando e tentando sempre a mais silenciosa, a mais meditativa das artes, uma arte talvez mais sublime que a própria sonora música: aquela que não existe no escuro, feita para a Luz e para o Olhar Humano. Bela aventura essa tal da Arte Contemporânea. Sem dúvida melhor do que trabalhar.
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7 comentários:
Cara, por favor, eu PRECISO assistir Juventude.
Não existe em lugar algum para comprar, não passa em cinemas.
Você não tem cópia pra vender não?
Por favor, aguardo resposta.
Obrigado.
Bodhi Caadaf (bodhisao77 @ gmail . com
Domingos, quase não acreditei quando você respondeu ao meu comentário... e voce escrevendo meu nome então, que prazer!
Olha,se precisar de uma câmera amiga coloco a minha a disposição. Meu maior sonho é pelomenos ver você e a Priscilla que são minhas referências, se hoje tenho paixão pelo teatro e já decidi que é o que quero fazer da vida, foi graças a vocês!
Esse texto é maravilhoso, como todos os seus textos.
Querendo uma câmera amiga, já sabe!
Beijos pra você e pra Priscilla!
olá
gostaria de saber se vocês divulgam festas no site.Estou divulgando uma festa que vai rolar no dia 11 de julho no Glória e queria saber se posso te mandar o release. Vai ser bem bacana, com Tetê Espíndola se aventurando de DJ.
Me avisa!
chanchadafesta@gmail.com
Abraços
Nath Moraes
olá, domingos. é o 'alvo'! obrigado por me responder. não deu pra assistir a peça na última semana. em qual teatro próximo poderei te encontrar pra te conhecer??
grande abraço!!
Domingos, tenho pensado sobre o que seria a arte de hoje. Só posso defini-la como o lugar onde quero morar, onde preciso morar. Embora às vezes seja tão difícil. Me pergunto se Thomas Mann, por exemplo, não faça ciência. Você frequentou os corredores da ciência, eu frequento. Sabemos, portanto, o que é o deserto. Os seus filmes, felizmente, pude assistir com atenção: Separações, Carreiras, Amores, Feminices, Todas as Mulheres do Mundo. Pude sentir-gostá-los. São duma arte franca. Assim, pessoas que realizaram essa arte causam admiração em principiantes como eu, que almejam a arte, mas não a realizaram. Por isso, meu grande apreço pela oportunidade e estímulo que você está dando através desse blog. É algo realmente e grandemente importante para quem quer fazer arte no Brasil. Principalmente para quem ainda não fez. Não me atrevo a propor agora uma parceria, queria contudo que lesse um pequeno roteiro que escrevi e me dissesse se sente alguma coisa. Se ele te diz alguma coisa. Se não for pedir em exagero.
Jorge Cunha Cruvinel Filho
(jorgefilho1@yahoo.com.br)
在莫非定律中有項笨蛋定律:「一個組織中的笨蛋,恆大於等於三分之二。」....................................................................
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