Olivier em Hamlet
“Sua coragem intelectual é apenas
comparável ao seu poder de compaixão”. Explico a frase que disse para Dani
Barros depois de assistir “Estamira”. Sei que parece formal e excessivamente
respeitosa, mas é assim que eu fico diante de um grande trabalho artístico. Não
verti uma lágrima durante o espetáculo. Por dentro e por fora me perdiguei em
posição de sentido, como deve ser feito durante as orações. A Estamira de Dani
Barros é grave.
Eu não vi o documentário. O amigo
Prado me perdoe, não foi por falta de estima. É que eu sabia tratar-se de uma
descrição profunda do sofrimento causado pelas doenças mentais e não quis
passar por isso. Imaginei que seria o mesmo que ver uma sessão de tortura. Sei
que dói muito ser louco, embora nunca tenha passado propriamente por isso,
apenas por perto. Minha mulher e os amigos foram ver, mas eu não. Acho que
nunca um documentário ganhou tantos prêmios.
Por essa razão resisti em ver o
trabalho da Dani Barros. Acabei indo, sentando na primeira fila, tanta
insistência dos amigos. Se não caíram as lágrimas durante a representação, não
faltaram logo depois que acabou. Chorei quinze minutos.
O espetáculo transita todo o
tempo muito perto de um sentimento que devia ser proibido na vida e na arte,
que é a autopiedade. Autopiedade é feio, é ignorância: um passarinho cai do
galho morto de frio sem nunca ter sentido pena de si mesmo. Pois bem, Dani
caminha todo o tempo sobre o fio dessa navalha. E não cai. Não toca nunca a
autopiedade. Seu sofrimento é digno, altivo, como deve ser a Arte.
Trata-se de um trabalho sobre a
compaixão, sobre o nobre sentimento da lástima pelo sofrimento humano. As
pessoas de modo geral sofrem tanto quanto podem suportar na sua humana lida. E
nós outros que por vocação amamos nosso semelhante, sofremos também por não
podermos evitar esse fato. A compaixão, que não é exatamente a paixão mas vem
com ela, é um sentimento característico e natural do homem são. Infelizmente
são poucos os sãos.
Quando essa lástima é levada às
suas últimas conseqüências, transforma-se num verdadeiro embate com Deus, Ele
mesmo. Como trava Camus em “O Estrangeiro” (que li aos 18 anos), Dani Barros
nessa peça e Dostoievski toda página. Esse enfrentamento ontológico ultrapassa
o problema social ou qualquer outra objetividade. Assim como ultrapassa a
Denúncia, o Ódio e a Revolta.
É neste terreno, pantanoso porém
florido, que Dani caminha. A mistura que ela propõe, da loucura de sua mãe e de
sua mãe Estamira, é audaciosa. O teatro-confissão, dito na primeira pessoa, é
mais raro do que parece. Almejado por qualquer bom autor, é preciso muita
coragem para colocá-lo em cena.
Não falei com Dani, que não
conhecia antes, mais do que dez minutos ao terminar a sessão. Primeiro quis
aconselhá-la a largar a peça. Ou pelo menos não fazê-la muitas vezes, para não
passar por aquele sofrimento daquele papel muitas vezes. Logo percebi que
estava dizendo uma tolice. Quando alguém alcança, falando de si mesmo, uma obra
de arte, ela não dói mais! Não é mais com ele, é como se fosse com outra pessoa.
Que, esta sim, sofrendo aos estertores, fala por todos, para a humanidade. No
bom teatro o personagem sofre mas o ator não. O ator agradece no final, calmo,
sorridente e privilegiado, a possibilidade de exercer seu ofício.
Resta perguntar quem é Beatriz
Sayad. Ela dirige formidavelmente, na altura de todo o resto. E Soraya canta. Viva o teatro!
Passem lá. Vale a pena. Viver.
Respeitosamente,
Domingos Oliveira para Dani
Barros