quarta-feira, 25 de junho de 2008

ATUALIDADES

Peter Brook está no CCBB com peça de Beckett.
Não sou um fã de Albe, Pinter nem, confesso encabulado, desse mestre de todos: Beckett. Ele escreveu uma ótima peça, “Esperando Godot”. Na hora certa. Depois permaneceu batendo na mesma tecla, penso como poeta do Brasil, do absurdo tedioso, da denúncia vazia. Quem não sabe que o homem sofre dessas coisas? Não são pontos de chegada. E sim, de partida, para algo melhor. Porém muita gente boa gosta, principalmente a geração logo anterior à minha, para quem o senso do absurdo foi uma revelação. Eu não me toco com essa literatura, perdão. Me parece que já fui e já voltei.
Mas possivelmente estou errado. Não devo ter dado a devida atenção.

Se me perguntam o que estou fazendo, respondo: “Você tem tempo pra me ouvir?”
Se eu me pergunto o que estou fazendo, respondo nada. Escrever é quase não fazer nada, tenho escrito muito. Enquanto espero amaldiçoados patrocínios. Fazer envolve contar com os outros. É corporal. Estou com dois filmes prontos, ótimos: “Juventude” e “Todo Mundo Tem Problemas Sexuais”, esperando patrocínio para lançamento. Para mim, já foram feitos há décadas. O prazer que resta é dar de vez em quando uma festa para alguns amigos e mostrar na TV. Sem a Priscilla na sala, é claro. Que esta não agüenta mais. Estou com duas peças prontas, ótimas: “Apocalipse, Segundo Domingos Oliveira” e a mais recente, “Confronto”, na qual caio na vala comum e falo das relações do Poder com o Crime Organizado. Pelo menos não tem um tiro. São todos longe da cena. Tem também um roteiro pronto. O melhor que escrevi na vida. Chama-se “Inseparáveis”, também esperando, adivinha o quê? Enquanto isso, para não morrer de tédio aos 71, monto meu show no Canequinho. Um show em que canto e danço. Ou seja, absoluta piração. Tudo piora com a idade. Mas não é que a cabeça fica melhor? Não só mais criativa e profunda. Também mais eficiente. E escrever, reconheço, é uma forte droga. Quando uma peça ou filme te possui, você não é ninguém.

Quero, cada vez mais, ter uma linha de trabalho que não dependa dos livros. Espetáculos ou filmes dimensionados para pagarem os custos e, se forem ótimos, dar um bom lucro. Esse dimensionamento na prática é apavorante. Você vai sendo reduzido a zero, pressionado ao zero, muitas vezes passando para o outro lado. Ou seja, pagando para trabalhar. Mas um homem sempre tem que ter sua segunda linha de trabalho, usando uma palavra gasta, independente.

Estreou o filme formidável. “Escafando e a Borboleta”. Não vejam, ninguém merece.

Hoje acordei sem nenhuma modéstia. Meu programa de televisão “Todos os Homens do Mundo” é, de longe, o melhor programa de entrevista que a televisão brasileira jamais fez. O do prêmio da academia, recentemente exibido, era hilário e montamos um agora de “Tangos e Tragédias”, também muito bom. Estamos vivos, espertos, Priscilla e eu. Mas o programa não repercute! Ninguém telefona no momento que termina, nem comentam no jornal. Provavelmente porque o Canal Brasil tenha pouca audiência, talvez por causa de uma certa Lei Áurea da nossa sociedadezinha atual: Se é bom, elogiar. Se é ruim, denunciar. Se é ótimo, destruir, arrasar. Não me incomodo com isso, não. Mas acho engraçado. O programa vai ao ar na quarta-feira, quarta que é dia de jogo.

Agora, na minha sétima década, penso demais na morte, cometo essa tolice. Acho que tenho pouco tempo, etc. Impressão essa que é desmentida todas as manhãs. Pela lucidez com que acordo, não importa qual a noite anterior. A sensação de que algo interessantíssimo se inicia. Hoje nasceu Enrico, filho de Renata Paschoal. Não conhece a Renata? Não sabe o que está perdendo. Disse de manhã ao telefone para o pai palavras de sempre: “Agora você não é mais um ponto solto no espaço. Você faz parte de uma linha que se estende infinitamente para o futuro e que, para o passado, vai até os protozoários. Parabéns, pai. Agora sua vida não é mais sua.”





PASSADO:



Estou tentando fechar meus recuerdos, minha infância. Cada um tem o Amacord que merece. É pouca coisa, porque todo o resto está contado na minha peça "Do Fundo Do Lago Escuro". E eu não vou ficar aqui repetindo. Se lá está melhor, vocês podem ler. Porém talvez haja algo que não está registrado. Gostaria de falar sobre a foto que vai abaixo, tirada em 1907. Na qual, portanto, todos estão mortos há muito tempo.

Farei isso na próxima postagem. Nessa coloco minha emoção quando esrevi o "Do Fundo Do Lago Escuro" e li num teatro. Leiam, é uma bela estória.



DO FUNDO DO LAGO ESCURO
Eu não escrevei uma linha da peça. Eu ouvi vozes com timbres diferentes e tudo era lançado de cá para lá, por duas vezes saí correndo do escritório com medo de certas coisas que eu não sabia e que a peça estava revelando.
O grosso do trabalho foi feito durante uns três meses, aproveitando um tempo no qual a TV, por causa de um desentendimento, me deixou inativo, de castigo. Me contam que foram três meses, porque, na verdade, não tenho idéia. Foi muito rápido escrever o “Lago”. Uma vida inteira, porém muito rápido. Lenita me conta que eu fiquei muito distante de tudo, embora aparentemente normal. Que somente saía do escritório para comer e que qualquer coisinha fazia vir lágrimas aos olhos. Isto é, o escritor. Com uma dignidade que absolutamente eu não tenho...
Antes de começar, andei tomando alguns “impulsos” que hoje me parecem ter tido importância. A peça nasce de um sonho. Um dia tive um sonho muito intenso, porém sem nenhuma “narrativa”. Uma sensação avassaladora, de alguma coisa muito antiga e muito amada, de uma coisa pedida para sempre. Acordei chorando, mobilisadíssimo e alguns dias depois (ou no mesmo dia) fiz uma canção, no violão, a canção que antecede a peça. Depois se passaram alguns anos antes que eu pudesse enfrentar esta “peça sobre minha infância”.
Na verdade tudo o que um escritor escreve é mentira. Como observou Fellini, a mentira é a alma do negócio. Tudo é mentira, por mais vivido ou “autobiográfico” que seja. O escritor sempre mistura muitas coisas em apenas uma, inventa muito, corrige muito o mundo. Permeia com benevolência todas as deformações causadas pela individualidade da sua visão do mundo. E, nesta medida, tudo é verdade.
Para começar juntei todas as fotos que tinha da infância. Eram algumas, o suficiente para um álbum. Fiz o álbum, com uma meticulosidade religiosa,. Transformei-me em objeto de estudo, de observação. Passava horas olhado os fundos das foto, tentando compreender as manchas, sentir as texturas, respirar os ares. Demorei um bom tempo fazendo isso. E antes de lançar-me à máquina, reli, como quem toma o fôlego, a “Longa Jornada” de O’Neill.
Terminando o texto, encontrei no concurso do SNT, sob pseudônimo. Não tinha muita esperança de ganhar. Era talvez a primeira vez que eu havia escrito sem realmente pensar, por nem um momento, em agradar a qualquer tipo de platéia ou leitor. Foi para mim. Eu escrevi pra mim. Dedicado a Lenita e a Mariana, por todo amor que lhes tenho.
A peça não somente ganhou o concurso como agradou aos mais exigentes. Praticamente todas as companhias importantes do Rio quiseram montá-la. Logo depois do concurso entreguei os direitos de representação para Fernanda Montenegro, por motivos claríssimos: “Mocinha” permitirá que Fernanda mostre sua sempre surpreendente grandeza.
Li a peça em voz alta, apenas uma vez, no Teatro Ipanema, numa madrugada, pouco depois do prêmio do concurso. Tinha umas 30 pessoas lá, quarenta talvez. Algumas eram muito queridas: Lenita, Iva de Albuquerque, Susana Faini, Carlos Gregório, Solie Eich e várias outras. Havia um dado curioso à respeito. O texto ganhou o prêmio de melhor COMÉDIA, embora fosse obviamente um drama. Isto se deveu, segundo informações internas, ao fato de não poder dar o prêmio de drama a uma peça que não fosse diretamente “política”, etc, enfim, essa besteira já conhecida de todos. Quando comecei a ler a peça, porém, comecei a verificar que realmente aquilo era engraçado! Eu estava muito emocionado e quanto mais eu me emocionava, por algum caminho estranho, mais engraçada ficavam certas frases da peça. Antes do fim do primeiro ato, suspeitei que não conseguiria chegar ao fim. A voz embargava a cada momento, os olhos marejavam, eu estava emocionadíssimo. Foi quando percebi que minha “platéia” compartilhava da exata emoção. Muitos olhos brilhavam olhando para mim... Não tenho dúvida sobre o que fazer, soltei a emoção, como as rédeas de u cavalo. Li chorando, até o fim da peça. Às vezes o papel ficava até molhado. Chorávamos todos, as vezes rindo muito. Foi inesquecível. Se por mais não fosse, apenas esse momento teria valido o esforço de escrever a peça. Me lembrarei deste dia até o último dos meus momentos. Foi o dia em que eu pude chorar. Chorar, porque estava entre amigos.

Domingos Oliveira, fim de 1979.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

ATUALIDADES:


O jornal da manhã é sempre eloqüente. Demonstração do nosso país. Sem lei e sem sentido. Leio tudo o que posso, fotografo, e constato cada vez que um grande romance, peça ou filme poderia sair em qualquer uma daquelas notícias. A vida não começa em lugar nenhum. E sim em todos os lugares. Já a morte tem endereço.
Não penso em outras coisas esses dias senão na minha peça "de violência". Baseado na história de Luis Eduardo Soares, de parceria com Marcia Zanelatto. Todo escritor sabe. Há um momento em que a peça deixa de ser escrita pelo autor e bota o autor para escrever por ela. Comanda. Então tece, reina, despoticamente. Estamos chegando a esse momento. No "Sangrenta Madrugada Sangrenta". Decidimos trabalhar amanhã e apresentar uma versão grossa e feia para o Luis Eduardo no fim de semana. Depois conto mais sobre esse processo. O fato é que minhas meditações de sonhos noturnos têm ido todos em direção em entender o que é isso, o PODER. Não é o dinheiro que importa. É o Poder. Dinheiro é apenas o instrumento. Pelo Poder os homens matam, levam vidas inúteis, fazem maldades. E por ele, se suicidam. Na escala de valores da nossa sociedade, o Poder está no campo mais alto, sem dúvida. E cada vez mais. E qual é a graça do Poder? Que encanto irresistível é esse, pelo qual o homem se destrói alegremente? De que serpente é esse veneno? Não responderei suas perguntas. Quem sou eu para respondê-las? Porém me atrevo a bordar observações a respeito.
O medo domina a condição humana. E não sem razões. O próprio infinito diante do qual nos encontramos é terrivelmente apavorante, nada que o homem possa entender, realmente. E também a morte, etc, etc.
Esse medo torna todo o tempo o homem o lobo do homem. Mas deixo esse assunto na superfície. E volto ao ponto. Somente um outro homem mais poderoso do que você pode te matar. Então é preciso que você seja o mais poderoso dos homens.
Enfiados numa caverna na montanha, os primeiros homens vêem, apavorados, trovões e relâmpagos. Trancados em nossas megalômanas cidades, fazemos o mesmo.
Pode também ser lembrado que o Poder é uma nostalgia do Império Romano. Só pode citar um deles. Poder de vida ou morte do outro homem, o levantar e descer do polegar letal. Menos que isso, não é ainda o poder.
A última observação, creio que mais profunda que as anteriores, vem do irônico Kissinger. Que uma vez perguntado sobre o fascínio do poder, respondeu: "Bem, é afrodisíaco. Talvez esteja aí todo o segredo."
E agora saio do blog para pensar nos meus personagens. Ou melhor, deixar que eles pensem em mim.
Até a volta.


PASSADO:

Denuncio que eu não separei direito a infância da pré-adolescência. Que é diferente. Porque começam a sair dos pauzinhos misteriosas gotinhas brancas. No próximo post ainda quero dizer algo sobre minha esquecida infância.

Depoimento do meu amigo DINO:
(a pré-adolescência, o início da adolescência ainda extratos da série: "Como Sobrevivi")

Domingos ficava horas no telefone com ela naquela conversa amorosa, eles tiveram de fato um início de namoro, muito distante ainda fisicamente. Domingos ficava horas no telefone e eu enchia o saco dele para que ele largasse o telefone e viesse jogar xadrez, jogávamos muito nessa época, e jogamos pôquer, a boite do santuário nessa época existia a pleno vapor. Domingos tinha uma característica quando falava ao telefone que ele pegava qualquer coisa que você botasse na frente dele, então nós pegamos uma moeda com uma pinça, a esquentamos numa vela, até ao rubro, e deixamos ela na frente do Domingos. Bom, ele deu o maior berro (Domingos conversava com a Vitória). Ele ficou com o Dutra tatuado no dedo polegar. Alguns anos antes (13) tinha um cara que sentava atrás do Domingos, chamava-se Kleber, ele levantava os cotovelos do Domingos sutilmente e batia com eles na carteira no meio da aula e o Domingos não podia gritar. Também por ele ser baixinho.
E nós tínhamos um colega muito alto, um tcheco, tinha morado na China, e numa aula de inglês que era a última nós trocamos os casacos dos dois. E ficamos esperando. Quando o Domingos vestiu o casacão caímos na gargalhada. O professor ficou danado e acabou expulsando o Domingos, que era um bom aluno de inglês e tudo. Eu me acusei e acabei tendo de copiar não sei quantas frases.
Por outro lado tinha minhas brigas com Domingos, eu dava petelecos nele, enchia o saco, ele uma vez sacudiu a caneta tinteiro em cima de mim, me manchou todo, eu chamei ele pra briga, mas não dava preu brigar com o Domingos, porque eu era muito maior.
Ele namorou a Vitória mas um namoro muito pouco físico, deu uns beijinhos. Ela tinha uma casa em Nogueira, onde hoje mora minha ex-mulher, a Loly, e nós ficávamos em Petrópolis e íamos visitá-la. Ela tinha aquela irmã que era uma gracinha, eu ficava alucinado por ela e ela não me dava a menor bola. A vitória era cheia de frescurinha, não deixava segurar na mão direito. Houve uma festa em que o Garcia foi e aconteceu o segunite: dois garotos discutiram e desceram pra brigar na rua e nós todos descemos para ver. O Garcia desceu pela escada, eu desci com o Heitor pelo elevador, nós começamos a assistir a briga e de repente parou um táxi e saltou um homem adulto e o Garcia que vinha descendo correndo as escadas viu quando esse homem se aproximou de um dos brigões e puxou o cara de cima do outro. Esse homem era baixinho atravancado, usava terno. O Garcia vendo esse estranho agarrar o amigo dele pegou o embalo e deu um pontapé na cara do sujeito, o cara caiu no chão, de costas perto de mim e do Heitor, assim a uns dois metros e eu vi quando ele meteu a mão na altura da cintura. Eu disse pro Heitor que ele ia puxar uma carteira que ele era da polícia, mas o cara puxou uma arma, deu três tiros, as balas pegaram a um palmo da minha cabeça. Saí correndo no quarteirão e peguei a cena por trás, o cara ainda com a arma na mão. Ele fugiu, saiu a reportagem no jornal. Ele atirou assustado, pra se defender, porque o Garcia quando jogou ele no chão, partiu pra cima dele. Isso foi dois anos antes do Garcia morrer assassinado, só que foi a facadas.
Uma coisa que acontecia naquela época, era a figura do penetra. De repente, numa festa de família, entravam uns oito cafajestes sem serem convidados e passavam a mão na bunda das meninas, enfim, obrigavam que as pessoas se metessem em brigas. Um pouco para impressionar as meninas e também para nos protegermos e nos prepararamos para esse tipo de briga, nós começamos a fazer alteres, o que no caso do Domingos era patético, porque ele tinha um desvio na coluna, uma escoliose, e ele tinha um professor, o Bastiu (campeão mundial de haltererofilismo) depois virou yoga, ele pendurava Domingos numa esteira pra esticar a coluna dele. Não foi um longo período, mas foi um período onde o Domingos saiu-se muito mal. Paralelamente a isso nós tínhamos duas outras atividades esportivas: nós jogávamos sinuca no Cib, isso era um cacife meu, pois para jogar nos bares tinha que ter mais de 18 anos, e o meu tio era presidente do clube e deixava a gente jogar lá. Domingos jogava pessimamente, como aliás até hoje. Ele ficava distraído, gostava de jogar mas nunca ganhava, tinha o xadrez, o pôquer e também o basquete. Nós criamos um clube de basquete, o BAZUCA basquete clube, a primeira vez que o Domingos apareceu lá no Cib para nós jogarmos basquete ele veio de sapato de verniz preto, ficou todo mundo olhando aquela figura. E tinha o Paulinho que era alto mas que também era um péssimo esportista. Bom esportista era o Heitor, e eu também mau esportista mas bom competidor. O Domingos não era competidor nem o Paulinho. Uma vez o Paulinho pegou a bola e fez cesta contra, todo convicto. Nós ficamos olhando, ele indo na direção contrária com a bola quicando, muito alto, e a gente com vontade de dar porrada nele.
Domingos hoje é muito melhor do que foi. Ele tinha muito problema: água fria, areia, tinha asma, medo de dormir no escuro, ele gritava. Ele teve uma ligação com a mãe muito nociva, muito tumultuada. Ele foi um camarada muito frágil, baixinho, asmático, não nadava por causa da água fria, não ficava descalço, não pisava na areia. Ele fazia parte do nosso time de basquete, a gente se divertia. Nós tínhamos só uma camisa do time. A verdade é que a gente dava valor, não tínhamos a fartura que esses meninos tem hoje.


Nós tínhamos uma amizade muito profunda, amávamos as mesmas meninas, mas naturalmente a gente também se sacaneava. O Heitor já conseguia ir ao cinema com uma, dava umas bolinadas, a gente morria de inveja. Tinha também aquela piada do Berkel: Tem uma alemãzinha, linda, que pra dar uma trepada nela não custa quase nada, ela é uma gracinha, você topa? O cara ficava alucinado, "porra me leva me leva", o cara levava você por uma rua, por outra, até depois de meia hora chegava num prédio que tinha uma farmácia embaixo e dizia é aqui, aí entrava na farmácia e se pesava, você ia e se pesava também aí o cara te perguntava, e aí gostou de trepar na Berkel, você ficava confuso, Berkel era a marca da balança, quer dizer uma sacanagem, o cara todo arrumado, perfumado, ansioso pela trepada com a alemãzinha, morrendo de medo.
A noite saíamos para comer pizza, tomávamos muita cachaça e as conversas giravam sempre em torno das meninas, claro. Aí eu fiz uma viagem, não me lembro bem para onde eu fui, mas quando eu voltei, Domingos estava namorando uma menina aparentemente mais beijoqueira, chamada Nazareth. O pai dela era almirante, foi diretor do Loyd, ela tinha dois irmãos que eram verdadeiras feras. Só que o Domingos não levou durante muito tempo esse namoro. Era evidente que ele namorava a Nazareth não porque estivesse apaixonado por ela mas porque ela foi a menina que lhe deu bola. Ele rompeu com ela e voltou ao período das paixões inacessíveis. Mas nessa época já conseguíamos alguma reciprocidade, não das meninas que queríamos, mas de outras. O Domingos tinha uma amiga chamada Rachel Levy, que é amiga minha inclusive e que tinha um pai muito rico nós íamos ao Quitandinha, ela tinha um belíssimo ap lá, e nos servia coisas. Eu me lembro que uma vez a gente comeu um melão espanhol inteiro, servia bebida, coca-cola com cachaça, saint peterguine, e o Quitandinha tinha um bar embaixo, o Quitandinha era um lugar deslumbrante, era uma loucura, os bailes, os bailes de carnaval ia a Kim Novak, o teatro Silveira Sampaio, a piscina térmica.
A Rachel tinha uma amiga de corpo bonito mas feinha, boca feia, dentes feios. E a Rachel me disse que ela queria me namorar, mas eu como sempre estava apaixonado por outra inacessível, a Suzana, e então a Rachel falou com o Domingos, que começou a namorar a tal feinha. Acontece que ela era uma moça muito carente e que imediatamente permitiu uma permissividade sexual até para compensar sua insegurança e eu fiquei putérrimo de ter perdido essa. Só não treparam porque o Domingos não quis, respeitou a virgindade dela, essas merdas. Só que o Domingos tinha uma angústia, porque ela não era a amada. Havia a busca pela mulher total, aquela que reunisse o amor e o sexo. Domingos e Beatriz era aquela coisa nitidamente incompleta.
Aqui caminhamos para os 17 anos, a escolha da profissão. Domingos resolveu fazer engenharia, Paulinho engenharia, Heitor medicina e eu, direito. Domingos mudou de colégio, do 2º para o 3º ano foi para o Guanabara, que era um colégio de passagem para o pré-vestibular, uma baderna, ninguém ia a aula e eu fiquei no Anglo-Americano (o único). Mas mesmo assim nos encontrávamos sempre. Apesar de estudarmos para o vestibular, nessa época arranjamos uma mesa de ping-pong e colocamos na boite do santuário.
Minha mãe tinha uma amiga, cuja filha andava um pouco conosco e era apaixonada por mim e eu naturalmente não tinha o menor interesse por ela mas por uma outra que devia ser noiva, não me dava bola, enfim, e essa moça que se chamava Irene tinha uma amiga que deu uma festa e fomos, o Domingos, eu e o Heitor. Essa amiga se chamava Eliane, era uma baixinha, estava de boina, muito bonitinha, fumava, era avantgarde, e nós três ficamos interessados nela e houve uma competição amigável entre nós, eu tive um flerte com ela, ela se apaixonou pelo Heitor e o Domingos gostava dela, e no frigir dos ovos ela acabou namorando o Domingos. Mas ele namorava a Beatriz. Criou-se um triângulo. O Domingos na verdade não assumia a Beatriz como sua namorada, tinha uma certa vergonha dela, porque ela era feinha, ele mais usava ela pra sacanagem. Mas ela era apaixonadíssima pelo Domingos. Eu ficava numa situação muito chata porque ele vinha falar comigo, aquelas coisas. Eliana era muito ciumenta e não sabia da existência da Beatriz. Uma vez na minha casa o Domigos estava esperando a Eliana chegar e aí chegou a Beatriz. O Domingos acabou rompendo com a Beatriz de uma maneira meio drástica, radical, ela tentou o suicídio, aos 16 anos. Ela chegou a propor ao Domingos que ficasse com a Eliana mas continuasse com ela que ela aceitava assim mesmo mas o Domingos não quis.
E no meio disso tinha o vestibular que nos levaria a uma mudança substancial e também começava a acontecer as correspondências amorosas, o fato maravilhoso da gente amar uma garota e ser correspondido, ser amado por ela.


Mas essas últimas estórias já fazem parte de uma peça minha que teve três títulos e foi meu primeiro sucesso. No próximo post falo dessa peça, cada um tem o 'Amacord' que merece.

Domingos.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Escrevendo Apressado

PRESENTE, OU MELHOR, ATUALIDADE:

Um blog é o modo mais eficiente de você descobrir que ninguém tem interesse em comentar as coisas que você pensa. Uma lição de humildade e, ao mesmo tempo, é uma fonte de rejeição. Mas não ligo, não. É o rascunho da minha biografia!!!

De repente acordo me sentindo um idiota, insatisfeito com minha vida profissional atual. Não faço nem teatro nem cinema há um tempão. Faço projetos. Entro e reentro em Leis, Certidões, Editais, ou seja, não faço nada, realmente, enquanto gasto meus dias. Em verdade, eu tenho escrito muito, leia a terceira parte desse blog que começa hoje. Mas pra quem faz teatro ou cinema, escrever não é nada, vamos e venhamos. Sei que é o mais importante de tudo. Mas não é “fazer”! Ou seja, não é nada. E é tão fácil cair no abismo das realidades. Peças e filmes precisam de patrocínios que são ariscos. Enquanto há uma multidão de idiotas correndo atrás desses. Quero ser um dos poucos na calçada da corrida de São Silvestre, atrás do tal do dinheiro que, aos 70, ainda não sei bem pra que serve. Quero dizer que, como ateneio há muito tempo e esqueci. Um homem precisa ter dois tipos de atividade. Uma que depende do mundo e outra que só depende dele mesmo. Vou começar a ensaiar. Não sei o quê, mas vou.

Peço desculpas ao leitor do blog por estar escrevendo pouco. É que estou ocupadíssimo com mil bobagens. A verdade é que não podemos relaxar. Temos de ter um contacto e um diálogo constante com a própria morte para não ficar fazendo besteira na vida.

Na minha última postagem, dei, sem querer, um pulo na minha biografia. Estou na infância, como ir ao Municipal com a Ângela??




PASSADO:

Diário dos primeiros anos, que não escrevi, mas poderia ter escrito: (extrato da Série "Como Sobrevivi?")

25 de março de 1946 (10 anos)
Estou estudando no Anglo-Americano. O colégio é imenso. Hoje na fila fiquei chateado, parece que sou mesmo meio baixinho mas ainda posso crescer muito.
28 de março de 1946
Todo mundo ficou olhando quando o chofer chegou para me buscar. Acho que sou o garoto mais rico daqui.
31 de março de 1946
Que alegria, meu Deus, pegar o bonde andando! A gente tem que correr do lado, segurar e pular. Não é difícil mas se a gente errar o tombo é feio. Isso sem contar que pode ser fatal.
5 de abril de 1946
Finalmente comprei minha coleção de "Guri". Não quero que ninguém mexa, vou guardar em cima do armário. Combinei comigo mesmo, que só vou ler de dois em dois dias, que é pra durar para sempre.
18 de setembro de 1947
Ganhei do Miguel no jogo de Bulica. Fiquei tão contente que dei uns palitos franceses da merenda para ele.
Porque mamãe não troca o guardanapo da minha merendeira? Está simplesmente nojento, todo manchado de guaraná.
20 de outubro de 1947 (11 anos)
Ouvi mamãe comentando com papai que se eu não melhorar da asma não vamos passar as férias em Petrópolis. Preciso ficar bom. Se ao menos eu pudesse suportar a água fria, poderia tentar a natação.
31 de outubro de 1947
A coisa mais importante do dia foi que finalmente consegui ouvir no rádio o tal Dorival Caymmi. É muito bom realmente, tem um vozeirão.
25 de junho de 1948
Estou apaixonado pela Carmem mas não sei porque ela nunca me sorri. Acho até que ela faz cara de enjôo quando me vê. Será que é porque eu sou baixinho?
2 de agosto de 1948
Estou com ódio do Prof. Leon. Isso não se faz. Ele sabe que eu não posso com água fria mas mesmo assim me obrigou a mergulhar com os outros. É um absurdo! Como se já não bastasse o torcicolo que ganhei pulando o cavalo de pau fazendo o tal movimento "peixinho". Todo mundo rindo de mim. O idiota acredita que faz parte da nossa educação física, passar correndo por cima da barriga dos outros. Eu odeio essas aulas.
27 de agosto de 1948
Não sei se foi o Paulinho ou o Heitor. Mas um dos dois melou o banco do carro todo. Sujou o terno do meu pai e quem teve que ouvir fui eu. Assim não vai dar pra continuar dando carona.
8 de novembro de 1948 (12 anos)
Só tem um aluno melhor do que eu. É o Garcia. Só que ninguém gosta dele e todo mundo gosta de mim. Se eu quiser, eu barro ele nas notas.
5 de janeiro de 1949
Já tenho muitos amigos aqui em Petrópolis. O Alberto é mais velho mas é meu amigo assim mesmo. Só não gosta muito é que eu jogue monopólio com ele. Disse que eu sou meio criança. Ele é que é mais velho. O pai dele é engenheiro e joga cartas com o meu pai.
Também estou amigo do Clarêncio, que mora aqui do lado. Acho que me apaixonei pela irmã dele, a Clarice. Não sei se ele vai gostar. Acho melhor não deixar ele descobrir, por enquanto.
10 de janeiro de 1949
Estou muito humilhado. Não sei porque essas coisas acontecem comigo. Estava muito bem olhando a casa, da varanda do quarto de minha mãe, quando vi o Alberto na casa dele e resolvi ir até lá. Ele estava ocupado e me pediu que esperasse um pouco. Então resolvi passar no jardim onde fica aquela piscininha e não sei como fiz, mas escorreguei e caí, de roupa e tudo. Atravessei correndo pra casa mas acho que as meninas que moram ali em cima me viram todo molhado, porque ouvi as gargalhadas delas. Como é que eu vou sair amanhã? Graças à Deus a Clarice não viu.
15 de janeiro de 1949
Zé Roberto pegou uma perereca na horta e trouxe para dentro de casa. Mamãe ficou possessa. Não sei se papai disse só para tranquilizar mamãe mas parece que ele vai mandar cimentar a horta e construir uma quadra de basquete. Não se se eu vou gostar.
5 de agosto de 1949
Hoje o Dino, aquele garoto de óculos, me deu para ler um conto que ele escreveu chamado "Coisas de Importância". É muito bom, ele é um escritor. Falei para ele entrar para o Clube Literário Barão de Macaubas. Afinal, tem pouca gente nesse colégio realmente interessada em literatura, música e cinema. Os imbecis só pensam em esporte. Vai ser bom ficar amigo do Dino, ele é alto e é mais um para me proteger do Garcia, pois seu eu for contar com seu Carvalho, estou perdido. Ele não inspeciona nada, o Garcia anda aí ameaçando todo mundo e ele não faz nada. Até o Prof. Medeiros veio me pedir conselhos sobre como agir com o Garcia. Ele agora se masturba dentro da sala de aula. Isso ainda vai acabar mal.
12 de agosto de 1949
Heitor, Paulinho, Eu e Dino fomos ao Metro ver um filme de ficção científica: "Destination: Moon".
15 de agosto de 1949
Vovó Sinhá me mata se descobrir que estamos nos reunindo no santuário que ela armou aqui em casa. É atualmente meu lugar preferido, com todas aquelas velas e aquele clima de escondidinho. A gente fica horas ali depois da escola ouvindo discos e conversando assuntos importantes. O Dino batizou o lugar de "Boite do Santuário". Vovó mata a gente se descobrir.
O Anglo-Americano tem as meninas mais lindas do Brasil! São deusas gregas de coxas de fora fazendo ginástica. Vamos todos explodir de tanto amor por elas.
29 de agosto de 1949
Tio Jackson hoje deu um trote memorável na vovó. Ele, de costas para ela, falava numa linha os maiores absurdos. E ela, no telefone do lado, gritando, xingando, sem perceber o que estava acontecendo. Nós rolamos de rir. Foi muita cara de pau do tio Jackson.
No jantar, tia Judith estava muito bonita. Até o Heitor comentou comigo que ela deve ter sido uma moça linda. Só acho que ela tem um olhar meio triste. Deve ser por causa dessa coisa de não ter marido direito.
30 de agosto de 1949
Passamos a tarde toda na Boite treinando dança. É importante saber dançar bem, as mulheres dão valor. Ouvimos Doris Day, Harry James, Nora Ney, Dick Farney e Lucio Alves.



(na próxima postagem: "como o mundo me vê", opinião do meu amigo Dino sobre minha pessoa.)


FUTURO:

Estou escrevendo uma parceria com Luiz Eduardo Soares e Marcia Zanelatto. Finalmente caí na vala comum dos escritores falando sobre violência policial e segurança pública. Estamos com 2/3 da primeira versão e estou obcecado. A peça começa a ter vida própria.



Estou escrevendo mais uma versão do meu show para estrear em julho, no Canequinho. Vai ser aos sábados, alternando dois títulos: "Pra Quem Gosta de Mim" e "História Pessoal do Samba".

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Primeira postagem independente

PRESENTE ou ATUALIDADES:

Ler um jornal todos os dias de manhã é uma tarefa dura do homem civilizado. Para realizá-la bem é preciso duas horas ou mais. E há quem gaste seu tempo nisso. Por mim, na maior parte dos dias leio apenas a primeira página e os “Cadernos B”s. Uma vez me ausentei por mais de um mês e quando voltei o mundo não tinha avançado muito. Confesso, sou daqueles que ainda acredita que o mundo avança. É que o movimento cotidiano vai e volta, vai e volta como as marés. Avança pouco mas é muito intensa. Irresistivelmente interessante.
Leitura do jornal de hoje, esse sábado frio no Rio:
As células-tronco ganharam 25 milhões para pesquisa e deve começar a funcionar no mês que vem. Já não era sem tempo. Minha desconfiança dos médicos é apenas comparada à minha confiança na medicina. Se der certo essa célula-tronco, vamos ter de levar a sério uma suspeita que sempre tive: Não somos mortais. Estamos mortais.
O Álvaro Lins foi solto. Está livre como um garotinho. Quem liberou foi a Assembléia Legislativa, que tem 33 de seus 70 deputados respondendo a processos de corrupção. Corporativismo não se discute. Não resta dúvida. A importância de um político é medida pelo seu grau de impunidade. Mas de qualquer modo, é muito bom ver a polícia funcionando bem, pelo menos no que diz respeito aos inimigos. O Governo Lula contém esses mistérios. Não legalizou a maconha, mas pode ser dito que legalizou a corrupção, na sua atitude contra (ou será a favor?) os mensalões e outras barbaridades. Ele está procurando punir com uma justiça inédita os inimigos. Já é muita coisa. Ao mesmo tempo que infantiliza o país, minimizando o valor da ética através de um populismo radical, cuida bem da economia e capricha na Polícia Federal. Obrigando os homens sérios a proclamar, contrariados. Talvez seja melhor assim. Afinal esse Lula não é de todo mau.
O jornal de São Paulo não coloca o caso “Álvaro” sequer na primeira página. Como que provando a sua indiferença provinciana. Por favor, paulistas, não se ofendam. Não tenho nada contra provincianismo. É melancólico, poético. Porém no Brasil só quem não aspira à Nova York e ao Texas é o Rio de Janeiro. O centro do mundo é onde você está.
Fora isso, um livro que parece ótimo tenta explicar como Paulo Coelho chegou a ser o que é. Paulo é meu amigo. Posso quase dizer isso. Diz-se bruxo. Eu acredito que seja. Posto que somente assim se explica seu hiper-extraordinário sucesso. Agora esse livro tenta explicar de outra forma. Através de um tenaz desejo de fama e dinheiro. Seja como for, ninguém chega onde ele chegou à toa. Gosto do Paulo. Sempre gostei. E de alguma forma me identifico, pobre aprendiz. Colocando no quadro de cortiça em frente à minha mesa uma pérola do seu comportamento profissional.
“Programação Literária para o ano de 1965: Comprar todos os jornais do Rio, em dia de semana. Verificar sessões Literárias, respectivos encarregados e diretores desses jornais. Enviar composições aos encarregados e carta explicativa aos diretores. Entrar em contato telefônico com eles, indagando que dia que o escrito sai. Informar aos diretores quais são as minhas ambições. Arranjar pistolão para publicação. Repetir a operação com as revistas.”
Bravo, bruxo amigo. A obsessão é sempre admirável.







PASSADO:

Levando em conta eu, como sobrevivi?
(crônica que escrevi quando era ghost-writer de Napoleão Moniz Freire na "Tribuna da Imprensa”, com uns 26 anos, creio)

Tinha doze ou treze anos quando gostei de Ângela. Ela era interna no colégio, ou seja, maçã do paraíso. Era proibidíssimo conversar com as "internas" no recreio, entrar no "estudo" das "internas" e muitas coisas mais.
Eu estava apaixonado pela Carmem, que era amiga da Ângela e não era interna. Porém um dia a Ângela sorriu e troquei de paixão em um átimo. Talvez porque a Carmem não me sorrisse nunca e, pelo contrário, fizesse cara de enjôo quando eu aparecia.
Meia hora antes do recreio começar eu já ficava nervosíssimo. Minto. Eu ficava nervoso na hora de sair para o colégio, às sete da manhã. Me vestia sempre o melhor possível, no que meus colegas achavam uma graça enorme. Um dia ganhei um cachecol de seda branca, para usar com o smoking, com franja branca nas pontas. Fui para o colégio de cachecol, no primeiro dia que amanheceu mais frio.
A grande agonia eram os dias de "ginástica". Eu tinha de sair de casa às seis, penteado com gumex e de cachecol, além de penteadíssimo. Trocava o calção, fazia a ginástica mas depois não tomava banho, senão ia despentear o cabelo.
Tinha ginásticas que a Ângela assistia. Era terrível. Peito pra fora, barriga pra dentro, confesso que meu físico não era tão bonito quanto eu precisaria. O pior é que as internas só assistiam a parte final, que ou era "peixinho" ou era basquete. "Peixinho" é um salto que a gente tem de dar por cima de um cavalete, não importa com quanto medo esteja. A boa técnica ordena mergulhar resolutamente, apoiar primeiro nas mãos e depois rolar numa cambalhota. Jamais apoiar diretamente com a cabeça, exatamente o que fiz e justo quando Ângela estava olhando (será que ela viu?).
O basquete na verdade eu não conseguia nunca pegar na bola. A não ser quando meu fiel amigo Herculano, num gesto de generosidade, me entregava quase em mão. No dia que Ângela estava assistindo o basquete, pedi por amor de Deus a Herculano que me desse um passe. Embora a partida estivesse duríssima, Herculano traiu sua posição de capitão de time e me deu o passe. Nunca devia ter feito isso. Fiquei nervoso. Abracei a bola e saí correndo em direção ao campo mais livre, sem notar que não era o do adversário. Meus contendores ficaram perplexos. Graças a Deus não teve tanta importância porque errei a cesta.
Um dia tomei coragem e resolvi que tinha de dizer a Ângela que a amava com paixão e loucura. Mas para isso a gente tinha de sair junto. Onde ir? Não tive dúvida, considerei que o lugar certo era a ópera. Convidei Ângela para ir comigo à Ópera. Ela aceitou! Então fomos. Ao Municipal, ver "La Boheme".
Meu primeiro grande problema foi saber se a Ópera era imprópria até dezoito anos. Se fosse, tudo estaria perdido. Pedi a mamãe para telefonar. A Ópera era imprópria até catorze, Deus seja louvado.
Mamãe emprestou o carro, com chofer e tudo. Botei o cachecol e fui buscar A-n-g-e-l-a. Ela estava linda, me esperando na porta, a mãe dela na janela.
“Quem sou? Sou um poeta. Que coisa faço? Escrevo. E como vivo? Vivo!” Rodolfo cantava isso, de pulmões abertos, para Mimi. Eu, solidário, emocionadíssimo. Num repente de audácia, fiz a vida imitar a arte e peguei na mão de Ângela! Ângela tirou a mão. Peguei de novo. Ela tirou de novo. No intervalo comprei balas.
"Quando me vou, sozinha pela rua.” Segundo ato. Eu não estava entendendo muito bem a estória da ópera, essa é que é a verdade. Em italiano. De repente todos ficaram tuberculosos. Antes do terceiro ato, era minha última chance de me declarar.
Intervalo outra vez. Ângela foi ao toalete. Eu me aproximei de uma das sacadas do teatro e olhei as luzes da rua longínqua. O vento frio, as pessoas passando. Rolou a lágrima, veloz e parou, ainda no rosto.
Falando rápido, enquanto as luzes apagavam, disse tudo. Foi mais fácil que eu pensava. Eu tinha tudo pronto: "gosto de você" (melhor que "te amo"), "vou ser o homem mais feliz do mundo se você gostar de mim, se você gosta de mim deixa pelo menos eu ser seu amigo e, se der, confidente".
Ângela então me falou do namorado dela. Um rapaz parecido com o Tony Curtis, segundo ela. Se ela não gostasse do Tony Curtis, gostaria de mim - disse Ângela - eu tinha tudo, tudo que uma menina podia querer... Além do que, eu era muito moço e o Tony Curtis já tinha vinte anos.
Bonita a área final! Mimi morre e Rodolfo grita seu nome como se estivesse enterrando uma faca no peito!
Outro dia vi Ângela na rua. Reconheci. Conversamos dois minutos, antes de aparecer um ônibus que ela tomou. Não é que Ângela acabou casando com o Tony Curtis?! Tem dois filhos. Eu disse que gostaria muito de conhecê-los.