(Se não quiser saber a história do filme, não leia este estudo!)
Os roteiros de W.A. têm a consistência de um romance literário. Não são do tamanho do filme. Isso porque ele joga habilidosamente com inimagináveis lapsos de tempo. Não faz uma economia em tramas paralelas. Mas tem uma noção aguda de que parte da estória é dramatizável, sendo o resto narrado por offs e imagens.
Esse filme recente dele, ‘Whatever Works’, leva essa técnica ao paradoxo. Ele vem desenvolvendo a trama e quando esta enfrenta um impasse, quando o resto da trama pode ser adivinhada pelo espectador, ele arma um lapso de tempo e narra o que aconteceu. No filme citado, temos:
1. A descrição do personagem. Utilizando como interlocutores amigos em mesa de bar, ou simplesmente a própria plateia. O personagem é armado com características muito especiais. O mau humor representado por Larry David é desesperado, tem síndrome do pânico, odeia as pessoas (a quem trata mal demais), mora num canto incompreensível de Nova York, um buraco de rato e escolheu, como meio de vida, ser professor de xadrez para crianças. Ele já quase ganhou o prêmio Nobel de física, que é o mesmo que ter ganho o prêmio Nobel de física. A sua principal característica, tratar a pontapés suas crianças e o resto das pessoas, é exercida com um mau humor exemplar. Diz na cara das pessoas que ele é um gênio e que elas são mediocridades ridículas. Observemos aqui o número de dados que o personagem tem para sua apresentação: são 6 dados absolutamente originais e longe do lugar comum. Ele é simpático, não gostaria ser assim com as pessoas, ou melhor, afirma suas posições mais para defender do que para atacar. É desnecessário dizer que antes de qualquer trama, o filme já é engraçado.
Ah, sim. O mais importante dos dados. Ele já tentou o suicídio uma vez, se jogando pela janela. Mas caiu sobre o toldo e não conseguiu morrer. É a presença da morte, imprescindível para a comédia.
Aí acontece a primeira trama. Absolutamente por acaso, ele é abordado na porta da escada por uma bela jovem, burra e desinformada, que diz que não tem onde dormir, que precisa de ajuda, e insiste até ele a levar para dentro de casa. Esta já é um elipse sobre o tempo em que ele conhece a moça e leva para o apartamento. Um cineasta normal levaria 15 minutos para descrever esse processo de persuasão. Allen leva 3. Dentro de casa, a primeira coisa que se pensa é que ele vai comer ela. Ledo engano. Allen trabalha pelo inesperado, e acontece o contrário. Ele não quer saber do amor, do sexo, nada. Está desiludido também nessa. Mas a moça dorme lá naquele dia no sofá da sala, ficam próximos, ele sente uma sensação agradável de calmaria que permaneceria se não fossem seus princípios.
O normal é que ele fique apaixonado, mas W. quer o imprevisível. A garota é que se oferece, apaixonada por ele, que é feio e velho. Como ele resiste, passam a conviver como dois amigos. W. precisa agora de um acontecimento que faça os dois se aproximarem. Ela encontra, para angústia do espectador, absolutamente por acaso, num esbarrão, um jovem da idade dela de botar respeito. Lindo, delicado, apaixonante e sexy. E convida ela pra sair. No que ela se oferece pra sair, sentimos que o Larry sente ciúmes, pois está precisando dela. Mas deixa ir e esconde qualquer reação.
Outro lapso de tempo. O que acontece entre ela e o rapaz, não vemos. Apenas imaginamos. Vemos só sua volta para casa, bêbada e, para surpresa de Larry, tendo detestado o jantar. Porque as pessoas são burras, não sabem das teorias sobre o mundo, que ela está acostumada a viver com um gênio, e diz que não quer mais sair com esse tipo de gente. Ele fica encantado e propõe o casamento.
A trama até aqui já seria suficiente para um filme. Mas W.A. está apenas no início. Ele não enfrenta a fase de recém casados deles. Tudo o que as cenas poderiam render já está dito no filme. Sua fulgurante inteligência permite-lhe perceber isso e dar um pulo no tempo para dois anos depois. Uma rápida narração, sabemos que eles estão felizes, mas que ele continua o mesmo pessimista de sempre. O que a incomoda alguma coisa. Ela quer que ele seja alegre.
Aí batem na porta. Nesse momento em que não havia nada mais para dizer, é preciso trazer um personagem novo. Uma forte estória paralela. É a mãe da menina. Burguesa do interior, que chega na casa disposta a ficar. Quase desmaia quando vê o genro e o odeia com todas as forças. Aí também o escritor fica confortável para continuar. Ele não tem mais o que contar dessa mãe. Não duvida e dá um pulo no tempo.
Um ano depois. A mãe, que era uma reprimida do interior e crente, que abandonou o marido porque ele ficou com a melhor amiga dela, começa a dar pra todos os amigos do velho. Compreende a liberdade nova iorquina.
Aqui Allen tem de inventar uma nova. O engraçado dessa mãe insignificante que detesta o velho é evidentemente se perder, mas não. W.A. sai com uma surpreendente. Um dos amigos intelectuais dele acha as fotografias que ela tirou com uma máquina vagabunda geniais e a lança como uma artista plástica de assuntos eróticos. Ela faz um enorme sucesso, com vernissage e tudo. Seria normal que ela casasse com esse amigo descobridor de seu talento, mas A. prefere a surpresa. Ela casa com dois melhores amigos de Larry. É muito feliz com os dois.
Aqui não há elipse. Posto que há algo de imediato a acontecer. A chegada do marido. Pai da menina, conservador e interiorano! Acha um escândalo tudo, arma um banzé e acaba sendo expulso dali.
Sei que o funcionamento do filme não é a essência do poeta. O poeta necessita que todos os personagens sejam salvos, inocentes, joguetes da vida. Que ninguém seja culpado. De modo que agora começa a terceira trama com vigor, obedecendo a este plano.
Como salvar a menina? A mãe dela que detesta o Larry e vice versa, arranja um ator gostosão e irresistível que arma condições para que ela traia o Larry. Essa corte é tão romântica que compreendemos que ela não poderá resistir. Beija-o, apaixonada. A cena seguinte é dolorosa e da máxima coerência. A menina vai contar para Larry que está apaixonada por outro. Sabemos que Larry sofrerá muito. Mas por que ter pressa para fazer este desenlace se o gancho é tão forte? Quando ela vai falar pro Larry, cortamos para o pai burguês, desesperado, num bar. Ele começa a ter uma conversa com um homem que parece gay. O homem nota que ele se interessa pelo assunto. Ele conta que sempre detestou trepar com mulher e uma nova estória de amor surge. O pai revela-se um gay enrustido, para alegria do seu companheiro de bar. Depois desse hiato genial, voltamos para o apartamento de Larry e a moça diz pra ele que ama outro. Larry não pode trair sua filosofia, não tem um ataque de ciúme desesperado. Sabe que os encontros amorosos são impossíveis por muito tempo. Deixa ela ir, fazendo o espectador chorar.
O filme não descreve a falta que ele sente dela nos dias seguintes. Resume a narrativa em dois planos. Um mostra Larry em casa, triste, e o outro mostra uma janela cheia de vitrais contra a qual Larry se joga impetuosamente, suicidando-se. Mas uma comédia não pode acabar assim. Nem que seja por cortesia ao espectador, Larry falha no segundo suicídio. Cai em cima de uma mulher que passava. Ele não sofre nada e a mulher se arrebenta toda.
Elipse, quatro semanas depois. Num hospital, ele conversa com a mulher que “o amparou”, e sentimos claramente que eles foram feitos um para o outro. O absurdo da situação não incomoda Allen. Ele sabe que o acaso comanda a vida.
Na última cena, somente resta fazer um happy end total e, sem pudor, Allen coloca o rompimento do ano novo. Todos estão felizes. A mãe com os amigos, o pai bichíssima com seu companheiro, a menina completamente apaixonada pelo ator e Larry, comovido com o encontro com seu novo amor, essa mulher culta, inteligente, etc.
Mas não pensem que acabou. O poeta vive em busca do poema. É preciso que algo seja dito no final do filme que ilumine todo o resto. Allen Larry David avisa a todos que tem uma multidão do outro lado da tela olhando eles. Ninguém acredita. Ele fala então com a platéia, sem atrapalhar a festa, dizendo que é preciso aproveitar a vida, dar todo o seu amor, etc., e que ele é o único daquela turma que tem a visão do todo. Dentro e fora da tela. É formidável.
PS.: Tenho vontade de dar um Curso de Dramaturgia em um teatro. Os alunos sentam na plateia e ficam olhando. Eu no palco, dito por uma digitadora um peça, conforme faço de verdade. Uso toda a plateia como colaboradora. Aproveitando algumas ideias, dividindo angústias e glórias etc. E o Curso é isso.
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Um comentário:
Gostei da idéia do curso, Domingos. Se a Vontade de realiza-lo ganhar forma, compro uma passagem e me inscrevo.
Abraço de um admirador de longa data.
Thiago
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