IDEÁRIO DE DOMINGOS OLIVEIRA
Sobre a Legislação de Cinema e Teatro
possível subsídio para a nova Ministra da Cultura
Ana Buarque de Hollanda
No início, era um divertimento. Divertir-se é necessário. A rotina enlouquece. Depois surgiu uma coisa chamada Arte, que pertence à essência da humanidade. Reis e imperadores perceberam que ela melhorava o caráter dos homens. A honestidade, a espiritualidade, a cidadania, a ética...
...A Arte, dada sua singular importância, não deve depender do mercado para existir. É uma atividade de utilidade pública. Nas atuais concorrências, a Arte não tem valor. Contam pontos os financiamentos obtidos, apoios, se os atores são famosos. E, o que causa mais indignação, quanto seu último filme obteve de lucro. O que seria ótimo se estivéssemos falando de amendoins. Nem roteiro pedem mais!...
...Os produtores, distribuidoras e burocratas dirigentes tem como certo dar ao público o que ele quer. A função do governo é dar ao público o que ele precisa.
Ouço o riso desagradável dos industrialistas: "Nunca saberemos o que o povo precisa". Discordo...
...No início do ano, na Folha Ilustrada, o diretor do departamento cultural da Inglaterra Michael Elliot disse coisas surpreendentes de tão óbvias. "Repassamos recursos para o Arts Council, que é a agência responsável pelo desenvolvimento das atividades artísticas. Neste caso, damos os recursos e debatemos as prioridades, mas não interferimos nas decisões. Até porque os membros do Arts Council têm grande expertise, e temos investido na formação desses líderes no setor cultural."...
...Lamento dizer que não há apenas detalhes errados na nossa atual legislação. O caminho está errado porque não leva a devida consideração à Arte. E o primeiro Ministro forte e lúcido que reconhecer essa situação de erro seria, em futuro próximo, um herói da pátria...
...A prova inequívoca que há algo errado na legislação atual é que a bilheteria não paga o produto e os relatórios dos filmes ficam sempre em vermelho. A situação é de dependência e paternalismo evidente. Porem de solução simples. Dentre outras coisas, cabe criar linhas de financiamento para os “filmes prontos”. Isso significa que o produtor faz um filme do próprio bolso e apresenta um resultado para o MinC. Se o filme for considerado útil para o cinema brasileiro, o produtor é ressarcido das despesas feitas. Se não, não...
... É preciso apoiar a iniciativa privada, o capital de risco, que tanto falta nesse país. Não há indústria sem continuidade. Atualmente, acontece o contrário, não me pergunte o por quê. Se um filme chega a ser exibido num festival em cópia digital não pode mais concorrer a editais de finalização e lançamento! Se começa a ser produzido, a produção não pode mais ser patrocinada. É exigida a enganosa virgindade do roteiro. O “edital do filme pronto” é necessário e urgente. Não podemos permanecer para sempre dependentes de imprevisíveis e influenciáveis patrocínios...
...O resultado direto das Leis de incentivo fiscal é tornar mais importante conseguir ou ganhar os citados patrocínios do que agradar ao público...
...Claro que no cinema brasileiro a diversidade é a alma do negócio. A descentralização é essencial e todo tipo de filme deve ser feito...
... É preciso facilitar a existência do filme independente, garantindo seu ressarcimento em caso de boa qualidade. Esta política reincentiva o trabalho em cooperativa, procedimento básico de cidadania...
...Esta política aponta na direção de bons filmes. O que importa fazer filmes num país pobre como o nosso? Importa apenas fazer bons filmes. O que seria do Cinema Novo sem “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, da retomada sem “Central do Brasil”? São as obras artísticas, as obras de autor, que elevam a importância social e econômica das atividades culturais. E são elas que abrem os mercados externos...
...Pouca gente sabe o que é a Arte. E quem sabe não tem a pedagogia necessária para explicar. A Arte faz parte da Cultura, mas não é a Cultura. É maior e mais importante que a Cultura, por mais importante que seja. Ou pelo menos pertence a outro departamento. Cultura é Educação. É uma coisa que se preocupa, que aprende, que bebe na fonte do passado. E nada mais importante no Brasil do que a educação, sabemos todos. Porém a Arte é a locomotiva da Cultura. É o arauto que anuncia o futuro. A Arte diz respeito àquilo que não existia ainda, e está sendo criado. A Arte defende a humanidade.
A Arte é transcendente. É a mais forte arma de comunicação, recurso didático para tornar os homens civilizados. A Arte ensina aos homens seus maiores valores. O amor, a dignidade, a honra, o patriotismo, a cidadania, a solidariedade. Por causa deste nobre alcance, a Arte jamais é citada em debates públicos. A massa burguesa da maioria encarregou-se nos últimos séculos a desmoralizar a palavra Arte. Segundo estes tolos, a Arte é uma coisa desnecessária, fútil, em geral exercida por gente que não gosta de trabalhar. Quando, na verdade, a Arte é o único trabalho verdadeiro...
...Um país pobre como o nosso não pode gastar dinheiro público com filmes e peças ruins. Somente devem ser feitos peças e filmes bons! E quem vai decidir o que é bom ou ruim? O único que pode julgar a arte é o artista. Ou aquele que tem um compromisso sagrado com Ela. E não é difícil reconhecer esse tipo de gente a primeira vista. É aquele que ama realmente a sociedade e constrói uma vida sobre esse amor...
...Muitas vezes um filme bom, realizado num sentido humanitário, ou seja, com Arte, fracassa na bilheteria. É preciso compreender o fracasso da Qualidade. Muitas coisas levam o espectador ao cinema, além da qualidade: O número de cópias; O número de cinemas em que foi lançado; Se tem ou não artistas da Globo ou outros igualmente midiáticos, etc. Os filmes devem chegar ao coração da platéia. A diversidade ainda não é o valor maior. E sim, a comunicabilidade...
...Não há nenhum vestígio na Legislação Brasileira de Cinema de medidas que protejam decididamente esse tipo de filme: o filme comunicativo de Arte. Muito pelo contrário. O resultado é que filmes ótimos como o recente “5x Favela” dão pouca bilheteria, por falta de infra-estrutura de distribuição e lançamento. E cada vez mais se considera como valor magno a bilheteria bruta. Aquilo que o filme rende em dinheiro, como se esse fosse seu único valor. Apenas por exemplo, a TV Globo estabelece o valor financeiro dos filmes que compra através de bilheteria. O próprio índice bilheteria/cópia, mais representativo do que a bilheteria bruta, não é divulgado. Bilheteria é importante, sem dúvida. Até numa obra de arte. Tudo de que eu ouvi falar até hoje chegou até mim porque deu dinheiro. Beethoven deu dinheiro. Kafka deu dinheiro. A arte é invencível. Mais cedo ou mais tarde ela alcança a todos e dá dinheiro. Muitas vezes, fora do período de vida do artista. Que, por isso, produziu menos. É uma lástima...
...Recentemente um filme que reunia Arte e comunicabilidade alcançou um número recorde de bilheteria: TROPA DE ELITE II. Antecipado por alguns outros filmes sem tanta arte, que também deram ótimas bilheterias, provocou uma onda ideológica que tomou conta do mercado. Que aqui chamarei de “Industrialismo”. No momento, somente atrai a atenção dos patrocínios esse tipo de filme de blockbuster nacional. Esta atitude é tão nítida e possui critérios tão fechados, que está ofendendo o próprio princípio da diversidade, obrigatório porque vivemos num país diverso. Os filmes “menores”, por melhores que sejam, não merecem atenção dos patrocinadores. O blockbuster “Tropa de Elite II”, e também alguns filmes espíritas e algumas comédias caracterizadas pela presença de atores midiáticos, monopolizaram o mercado. Esse tipo de cinema demonstrou ser um bom negócio, abafando todos os outros tipos. Tudo estaria certo se o cinema fosse um negócio. Mas não é. É uma Arte. A Arte do século XX. São os filmes de Arte que alimentam as indústrias. São neles que a indústria encontra sua possibilidade de renovação...
...Proponho, reivindico e afirmo a necessidade da criação, através do MinC, da Secretaria da Arte. A Secretaria da Arte regida por artistas. Fora de qualquer suspeita, privilegiando apenas o mérito artístico. Esta poderia apoiar filmes de alto ou baixo orçamento, sobre qualquer assunto. Desde que sejam filmes de Arte...
...Preconizo a volta da meritocracia artística. Caso contrário, estaremos diante do primado da mediocridade. Da idéia inútil e repetida, da mensagem conformista. Do mercado tem muita gente cuidando. Da arte, que é seu fulcro, ninguém está cuidando...
...A incompreensão das autoridades e dos burocratas responsáveis sobre este ponto fundamental é o problema do cinema brasileiro. Para completar, por favor, ninguém levante o argumento de que é difícil e subjetivo julgar o que é ou não é arte. Mentira! Mentira maliciosa! A arte brilha como o sol...
...Disposto à discussão destas idéias, me armo com a lanterna da paciência e continuo por aí batendo de porta em porta pedindo, com se fosse um prato de comida, uma inteligente compreensão. Daí a minha euforia diante da escolha da nova Ministra. Que, por ser quem é, certamente compreende, detém o segredo, possui a chave do cofre essencial da Arte...
...Uma esperança move meu coração.
Encarecidamente,
Domingos Oliveira
Autor, diretor e ator de teatro, cinema e TV.
Mas, principalmente, Artista.
Rio, 22 de dezembro de 2010.
3 comentários:
Não bastassem a sensível HUMANIDADE, e o eloquente clamor de LIBERDADE contidos nela, sua obra, Domingos - já testada pelo TEMPO - é exemplo de meritocracia e daquilo que 'brilha como o sol'... Talvez por isso sua carta cobre e acolha ao mesmo tempo, compartilhando esperança com quem a lê. OBRIGADA por tudo.
Ontem, Indústria de Cinema: pequenina, mas agigantando-se nos anos 70 e 80 diante do "Sistema" cinematográfico alienígena avassalador, ao confrontar-se,dinâmica, diante do Golias celulóidico. E através de sua aparente natureza frágil, glamourosamente tupiniquim, conquista 40% do mercado.
Hoje, Indústria de Captação: captação de recursos públicos à meia dúzia de produtoras/distribuidoras.
Não importa se o filme vai gerar lucro; não importa se ele é Arte; não importa se é cinema. Já está mesmo pago. Não há qualquer responsabilidade de essência fílmica. Os mesmos produtores/distribuidores, (olha eles lá!) novamente e por vezes no mesmo ano serão agraciados com milionárias verbas a fundo e à Arte... perdida. E os fecundos avaliadores (comissão) em editais, Hein?
Carlo Mossy:
(ingênuo cineasta há 45 anos igualmente metamorfoseado em
Bur(r)ocrata de pires na mão)
Acho que a carta resume bem os principais pontos em defesa da arte. Ao levantar a questão de que arte não é o mesmo que amendoim, vc me fez lembrar de uma aula na faculdade em que também um professor argumentava que Cultura (aí ele englobava tudo, inclusive a arte) não poderia ser vendida como sabonete. Pois sabonete passa-se por fora da pele e sai, já a Cultura entra em cada um de nós e fica.
Um abraço esperançoso!
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