INÉDITO: MANIFESTO SOBRE A ARTE
“Eu não sei o que é o amor. Mas se vejo um bom filme sobre o amor, aí eu sei o que é o amor. Não sei o que é a guerra. Mas se eu vejo um bom filme de guerra, eu sei o que é a guerra. Não sei bem o que é um girassol, flor estranha e amarela. Mas quando eu vejo um girassol que Van Gogh pintou, aí eu sei o que é um girassol. Não é preciso entender da vida para compreender a Arte. É preciso entender a Arte para saber da vida.”
Existem ideias deletérias que são extremamente difundidas. Uma delas é achar que o julgamento da Arte é subjetivo. Que considerar um filme ou uma peça uma obra de arte é questão de gosto. Isto não é verdade. É uma mentira deslavada e indecente. Os artistas, as crianças e os apaixonados, os inocentes e, porque não dizê-lo, aqueles que foram dotados de verdadeira inteligência... Estes sabem perfeitamente o que é a Arte e o que não é.
No início, era um divertimento. Divertir-se é necessário. A rotina enlouquece. Porém, nessa matéria, muitas atividades ganham do show business. Futebol, carnaval, as mais variadas festas, etc. Uma obrigação sagrada do Poder público é acessar ao cidadão seu divertimento.
Depois (ou terá sido antes?) surgiu uma coisa chamada Arte. Note-se que isso tudo aconteceu em tempos imemoriais. Pertence à essência da humanidade. A Arte, desde as mãos impressas na parede da caverna até o melhor filme da semana passada, apareceu com um poder novo tão ou mais essencial que o divertimento. A Arte ensina aos homens o que é a vida. Ela elogia e exalta as melhores capacidades do ser humano. A honestidade, a espiritualidade, a cidadania, etc. É a Arte que defende as grandes ideias que construíram a civilização humana. A ética, o amor e o pertencimento, etc.
No início, a Arte foi sustentada pelos reis e imperadores. Eles não puderam deixar de perceber que aquilo melhorava o caráter dos homens. Tornava-os mais inteligentes e produtivos, o que era uma coisa justificável em si. Como dizia, rugindo, o leão da Metro: “Ars gratia Artis”, “Arte pela Arte”. No passar geral dos séculos, o entretenimento descobriu que, se ele contivesse arte, seria mais rentável. E aí apareceram as indústrias de cinema, os empresários de teatro, do livro, da música e etc. Creio que foi um acidente de percurso. A Arte, dada sua notória e singular importância, não deve depender do mercado para existir.
Li recentemente que o diretor do departamento cultural da Inglaterra esteve no Brasil e disse coisas surpreendentes de tão óbvias. Coisas que mostram o quanto nos desgarramos, talvez irreversivelmente, do caminho certo. Disse, por exemplo, que deveríamos voltar ao Ministério da Educação e Cultura, posto que essas duas idéias estão ligadas: “Pela simples razão de que você só pode esperar o desenvolvimento cultural de uma sociedade se isso vier acompanhado de uma educação eficaz, que desperte, nas crianças, a apreciação pela arte.” E, igualmente: “É claro que vemos a cultura como algo, por si, importante, mas consideramos natural trabalhar em conjunto com nossos colegas da educação. Só assim conseguimos envolver as crianças em nossos projetos.” E conclui com uma frase que pode causar má impressão a primeira vista: “Política não deve ser feita para os artistas”. Creio que sei o que o Sr. Michael Elliott quer dizer com isso. Penso que o Estado não deve produzir filmes, peças, ou outras obras de arte. Que essa tarefa pertence à iniciativa privada. Que cabe aos Governos, isto sim, cuidar da infra-estrutura da atividade, para que todos possam exercê-la, o maior número possível de pessoas.
O que é a infra-estrutura? Deixemos que o próprio M.E. dê seu exemplo modesto: “Neste momento, estamos trabalhando no direito de cada criança ter cinco horas semanais de atividades culturais. Elas vão aos museus, os museus vão às escolas, enfim, têm experiências com as instituições de cultura nacionais.” Que movimento faz o Brasil nesse sentido? Nenhum.
Ao mesmo tempo, na mesma página do jornal, o Secretário de Cultura de São Paulo João Sayad afirma, para escândalo dos industrialistas: “Na Secretaria de Cultura nosso foco são as Artes. Não estamos preocupados com a educação (...) Também não queremos fazer turismo. Somos pressionados para atrair o turismo, mas nosso foco é a arte. Também não estamos preocupados nem com economia nem com emprego.” Palavras raras vindas de quem vem. Dr. Sayad, o Sr. está com toda razão. Somente a Arte salva, sem a Arte não há salvação. Precisamos encontrar entre nós quem defenda a Arte. Quem saiba reconhecê-la.
Nas concorrência atuais, nas Leis da renúncia fiscal, a Arte não tem nenhum valor. Conta pontos os outros financiamentos que você obteve, apoios, etc, etc, e, naturalmente, se os atores são famosos ou midiáticos. E, o que é mais indignante, quanto você obteve de lucro no seu último filme. Mentalidade que seria adequada se estivéssemos falando de bananas.
O Governo produzir filmes através de suas estatais ou outras renúncias fiscais é injusto, quase imoral. Como posso concorrer lado a lado com o filme igual ao meu, se este já tomou do Governo milhões, ou dezenas de milhões, e eu nada? Diria o Governo: “Mas somos nós que sabemos o que convém ao público assistir.”
O Governo financiar a ponta do processo: filmes, peças, livros, dança, etc., é um absurdo. E mais, um absurdo autoritário e dirigista. Só pode ser explicado um sistema desses se pensarmos no Poder que isto confere aos burocratas do Governo. Burocratas, por mais brilhantes que sejam, não tem a menor capacidade de julgar a Arte. Isto cabe a especialistas. A moral dos executivos e burocratas é sempre a mesma. Rejeitar o novo e antagonizar o revolucionário. E pregar o certo é dar ao público espetáculos que eles já viram. Dar ao público o que ele “quer”. Não é sua função. Sua função é dar ao povo o que ele precisa.
Ouço o riso desagradável dos industrialistas: “Nunca saberemos o que é ou não é Arte. Como poderemos compor uma comissão julgadora isenta?” Não quero responder essa pergunta idiota, qualquer criança, qualquer alma livre, sabe o que é Arte. Deixo de novo a resposta para o M. Elliott: “Repassamos recursos para o Arts Council, que é a agência responsável pelo desenvolvimento das atividades artísticas. Neste caso, damos os recursos e debatemos as prioridades, mas não interferimos nas decisões do Arts Council e no destino do dinheiro. (...) A influência do Governo sobre as decisões das instituições é cada vez menor, até porque os membros do Arts Council têm grande expertise, e temos investido na formação desses líderes no setor cultural.” Existem artistas e até uns poucos intelectuais envolvidos, capazes de julgar o que é bom e o que é ruim, como Arte. Negar essa existência é mais um recurso dirigista.
A Lei Rouanet não deve ser modificada. Deve ser extinta, bem como todas as outras do incentivo fiscal. Devia ser criado, para o bem do Brasil, um Ministério da Arte, regido por um colegiado de artistas, com notório e comprovado saber. Sei que esse tipo de modificação social tem muitos antagonistas, “os tiranos detestam a Arte”. Entretanto, necessita um longo tempo para ser implementado. Mas não seria uma boa ideia começar???
Lamento dizer que não há detalhes errados na atual legislação do cinema, teatro, etc. Lamento dizer que está tudo errado. E o primeiro homem lúcido que tentar corrigir essa situação de erro, será, em futuro próximo, um herói da Pátria.
A Cultura é a coisa mais importante na vida de um país. É ela que engrandece os homens, tornando-os dignos e moralmente poderosos.
Porém citemos algo perigoso, mas que não pode deixar de ser colocado.
A Cultura não é Arte, embora o oposto seja verdadeiro.
Num país ignorante como o nosso a Cultura se confunde obrigatoriamente com a Educação, já que nos falta a mínima.
Por outro lado, a Arte não. O brasileiro pode, teoricamente, ser o melhor poeta do mundo, o melhor pianista do mundo, o melhor orador, embora jamais possa ser o primeiro homem a pisar em Marte.
Que importância tem a Arte, se não faz pão nem derruba governos? Muito difícil explicar. O artista sabe que é a atividade mais importante do homem. Que não tem nada de elitista, ao contrário.
Os artistas sabem disso, muita gente sabe disso, mas para quem não sabe é muito difícil explicar, falta-nos a Pedagogia.
Talvez porque realmente não seja uma noção que cabe apenas em palavras, porém tentemos. O mais pobre dos mendigos entoa sua canção na calada da noite, o mais feroz dos bandidos dança seu tango, todas as pessoas vêm as novelas por causa da pitada de arte que ainda há nelas, multidões acorrem nos fins de semana aos cinemas, aos teatros. As novas publicações nas livrarias são extraordinariamente freqüentes, fazendo-nos perguntar “Quem afinal lê aquilo tudo?” A Arte é uma fome. Da alma humana. Seu melhor anti-depressivo, importantíssimo na prevenção do enlouquecimento geral.
Sem a Arte, a humanidade logo cederia aos encantos da sua própria brutalidade.
A Arte nasce na pobreza como na riqueza, trata-se de uma atividade de interesse público exatamente como a policia, a saúde pública ou o exército. Tem que ter apoios do governo, naturalmente, posto que não visa lucros materiais e sim espirituais, porém a sua importância inegável somente pode não ser sentida por aqueles que vivem em constante e selvagem competição.
O que seria do Cinema Novo sem “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, da retomada sem “Central do Brasil”, do Teatro sem Nelson Rodrigues. São as obras artísticas e autorais que elevam a importância social e econômica das atividades culturais.
No entanto a Arte é vista muitas vezes como entretenimento, recreio de adultos. E os artistas somente conseguem se aproximar dos poderosos na época das eleições, quando as verbas ficam mais generosas. É preciso pensar muito bem no uso do dinheiro público para apoio à Cultura. Cultura, hoje em dia, é qualquer coisa. Futebol é Cultura, televisão é Cultura, artesanato, show de strip tease...
Não estou insinuando que deva ser criado o Ministério da Arte, estou afirmando isso.
Apenas por exemplo, todo apoio dado aos filmes e as peças estão errados politicamente, porque o dinheiro público não pode ser usado na ponta visível do iceberg. Não adianta despriorizar o eixo Rio-São Paulo, o princípio do auxilio está errado. Temos hoje um Cinema e um Teatro que tenta agradar não o seu público, mas a seus patrocinadores.
Não sei como as coisas foram parar aí, muito provavelmente pelos caminhos da vaidade e da vontade do poder. Mas é hora de mudar. Se o governo quer popularizar a Arte, que convoque um colegiado de artistas de indubitável mérito para que estes descubram e nutram os maiores talentos do país sem distinção de cor, raça ou local. O esporte aprendeu isso há muito tempo, não patrocinam jogos e sim jogadores. O que importa fazer filmes ou peças num país pobre como o nosso? Importa apenas fazer bons filmes e boas peças.
E para isso é preciso agir sobre a infra-estrutura, saber onde estão os talentos novos, apoiar os velhos talentos, que são os mestres inegáveis. Criar o Ministério da Arte, ou a Secretaria da Arte. Todas as pessoas do Cinema sabem que as portas do mercado internacional somente poderão ser abertas através dos filmes de autor. Todas as pessoas de Teatro sabem que embora o empresário patrocinador ou o dono do Teatro exija muitas vezes a presença de um astro da televisão, a única coisa que garante sucesso é a peça boa. Agir sobre a infra-estrutura não é a delicia das vaidades. É preciso descer a mina, sujar-se de terra ingloriamente, para armar uma sólida base que permita que em todos os lugares a Arte floresça.
E por favor não venham dizer que eles não sabem o que é a infra-estrutura. No caso do Teatro é a inclusão desta Arte no ensino básico, é a diminuição do preço do ingresso através de adicionais dados pelo governo, é apoiar os grupos e as companhias independentes, é armar o circuito nacional, é trabalhar na formação de platéias e técnicos, etc, etc, etc... E é, principalmente, defender o Artista verdadeiro. Pedra angular de tudo.
No caso do Cinema a infra-estrutura é modificar o esquema de exibição de filme brasileiro tornando assim menos aviltante a concorrência com o produto estrangeiro. Criar o circuito nacional do cinema brasileiro, uma larga reserva de mercado, investir em formação de artistas/ técnicos, baratear o custo do ingresso, etc, etc, etc... Enfim, uma série de medidas importantíssimas com as quais atualmente ninguém se preocupa.
Com o dinheiro existente na atividade, poderíamos obter resultados muito maiores se agíssemos nesta direção certa. O problema é e sempre será o fato de que agir sobre a infra estrutura significa humildade e cidadania. Não traz poder nem votos. Além de tornar muito difícil qualquer dirigismo ou cerceamento da liberdade de expressão.
Fica assim demonstrado que a Cultura e a Arte são coisas muito diferentes, com objetivos diferentes. Não é então estranho que estejam no mesmo Ministério? A Cultura está muito mais perto da Educação do que da Arte. No entanto, tem seu Ministério, tendo a Educação o dela. Proposta ao candidato vencedor: um Ministério da Arte, regido por um colegiado de artistas, eleitos pela classe e periodicamente renovado. Quem fizer isso estará fazendo História. Porque o Brasil é um país de Artistas, ser brasileiro já é meio que uma Arte. Com um bom Ministério da Arte poderíamos exportar tanta Arte quanto sapatos. (O cinema é a segunda renda externa dos E.U.A)
Um país sem artistas não se preza.
O Governo tenta livrar-se do assunto, batata quente. Repassou a responsabilidade do desenvolvimento da Cultura e da Arte brasileira para os empresários e banqueiros, através da lei Rouanet e outras isenções fiscais. Comportamento violento. Esta tarefa é dele, Governo, inalienável. Mesmo porque os banqueiros e empresários, coitados, não entendem nada do assunto, vão ao cinema uma vez por ano e ao Teatro rarissimamente, quando a mulher exige.
Proposta para o candidato vencedor: extinguir imediatamente a lei Rouanet e congêneres, que lei de incentivo fiscal no Brasil não funciona desde a Sudene. Dando um jeito de entregar esses recursos ao Ministério da Cultura e, naturalmente ao bem vindo recém fundado Ministério da Arte!
Domingos Oliveira
Rio, 22 de maio de 2010.
ps.: Bato a cabeça contra a parede com essa ideia já há uns anos. Um dia me ouvem.
A PARTIR DAQUI, SEGUEM POSTAGENS ANTIGAS (ENTRE 26 DE MAIO DE 2008 A 17 DE JANEIRO DE 2009)
4 comentários:
Olá Domingos! mais que texto heim?! muito bom. como sempre "metralhando", nós, jovens leitores! Fico feliiiiz demaaais. Pois voltou a escrever, graças A DEUS! você é um meestree. até comentava no outro blog... Mas percebi que você tinha o abandonada. Enfim, é grande, é homem, é humano. Parabééns!!!
Sou Luriana, de São Luis-MA, tenho 17 anos. O conheci num festival de curtas aqui. Woody Allen brasileiro. rsrsrs.
meu email: lurianadesousa@hotmail.com
Abraços
Valeu, Luriana. É ótimo saber que tenho trânsito entre as meninas de 17 em São Luis. Escreva mais.
Querido Domingos!
Além de partilhar com você da admiração pelo maravilhoso Woody Allen (ñ gostei tanto, quanto imaginava que fosse gostar, deste último filme. Vou esperar e rever em DVD, onde não serei prejudicado pelo excesso de expectativas).
Voltando à discussão sobre cultura e arte...
Com relação às qualidades do projeto (a arte pela arte): não é isso que os jurados de editais e patrocínios públicos fazem? Julgam pela meritocracia, ao contrário do viés econômico. O problema tem sido o constante tema 'cultura e transformação social' que eles exigem como viés princiapal do projeto. Como você mesmo diz, a arte deve ser um fim em sí mesma e naturalmente transformará socialmente e culturalmente quem se beneficia dela.
Com relação aos empresários e aos agentes de marketing cultural, a solução só poderia vir do próprio estado ou colegiado de artistas, que definiriam onde seria investido o dinheiro. Uma grande empresa ou banco, devia nomear determinado artista como curador de marketing cultural. Em países onde a arte tem motor industrial - que ironia -, isso acontece. É normal uma trust como a Intel ou a Apple nomearem curadores, que dialogam com a própria classe artística e com as necessidades de descoberta do público. Se pensarmos que no Brasil, as cenas de novelas tem alguns produtos anunciados sem a menor intenção de esconder que estão ali de forma publicitária, as perspectivas são pessimistas.
Porém, termino jogando mais lenha na sua fogueira. As artes plásticas passam por um momento p´roblemático, onde a maioria das obras contemporâneas só dialogam com os próprios profissionais fazedores de sua arte. A frequente cobrança de soar novo e original, parece o aval para a desculpa de enganar - ou sobretudo, não se explicar - para o seu público consumidor.
Quem seria o colegiado de arte para regular os artistas curadores de cinema, teatro,etc.?
...
Para finalizar...
lembro que quando os teatros do Rio tinham os próprios diretores de teatro como curadores de espetáculo, a situação era muito mais transparente, artística e produtiva (irônico pensar que as palavras arte, transparência e produtividade possam existir numa mesma frase ou projeto).
É complicado, pois o seu manifesto sobre arte e cultura (e economia, educação, transformação social...)não se esgota. É como a estória da cobra que morde o próprio rabo.
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