Lembram-se, leitores do blog, do meu plano de fazer um filme hiperbarato chamado “Lugares Estanhos”? Aí vai mais um episódio.
A SEGUNDA CHANCE
original de Domingos Oliveira
CENA 1: ESCRITÓRIO DE RODRIGO,
ESTÚDIO, INT. NOITE
RETRATO DE LIVIA, GRANDE, NA PAREDE. ENTRE MUITOS OUTROS RETRATOS E POSTERS.
RODRIGO DIANTE DO RETRATO DE LIVIA.
NARRAÇÃO DE RODRIGO/INTROVERTIDO, INTENSO/
Lá fora há uma lua,cheia como um olho. Um antigo grego acreditava na existência de um fogo cósmico, por detrás do céu, sendo o sol e as estrelas
apenas buracos por onde podíamos vê lo.
PLANO GERAL DO ESCRITÓRIO. RODRIGO É UM ESCRITOR.
UMA MESA DE TRABALHO COM MÁQUINA E PAPÉIS. LUZ VINDA DE ABAJURES. MUITOS POSTERS E IMAGENS SOBRE AS PAREDES. UM LUGAR MUITO PESSOAL, LEVE MOVIMENTO DE CÂMERA.
NARRAÇÃO DE RODRIGO ... talvez seja assim, não sei de nada. Sei
apenas que Livia voltou.
CENA 2: RUA, NOTURNO, EXTERNA, CHUVA .
SÃO FLASHES (VIOLENTOS E POUCOS) DO DESASTRE QUE MATOU LIVIA: UM GRITO.O FOGO. LIVIA MORTA NO VOLANTE. LUZES E CHUVA.
RODRIGO CAÍDO NA RUA. RÁPIDO.
CENA 3:
PORTARIA E GARAGEM DO APARTAMENTO DE RODRIGO
É A RECORDAÇÃO DE UMA CENA CONFORME A VEREMOS NO FINAL DA QUARTA PARTE:
RODRIGO PÕE O CARRO NA GARAGEM, ANDA EM DIREÇÃO AO
ELEVADOR. CÂMERA NA MÃO, ANGUSTIADA, INDO SEM CORTAR DO GERAL AO CLOSE.
NARRAÇÃO DE RODRIGO
Minha realidade se espatifou como um espelho. Não tenho mais certezas. Sei apenas que Livia, amada Livia, voltou e que logo virá me buscar. Irei com ela. Com Livia,
minha paixão, para a morte, para o nada, para onde ela me levar.
INSERT 1 O FOGO NO CARRO, O GRITO VIOLENTO, RÁPIDO
CENA 4: SALA DA CASA DE RODRIGO
ELE ABRE A PORTA, ENTRA. A SALA ESTÁ VAZIA E NA PENUMBRA,
CONFORME A VEREMOS NO FINAL DO QUARTO BREAK.
NARRAÇÃO DE RODRIGO/SEMPRE FEBRIL/ -
Sei que tenho cinqüenta anos e que hoje vou morrer. Sei que Livia voltou e que nada vai me separar dela outra vez. Penso, recordo, tento entender, embora entender não importe.
A realidade se espatifou como um espelho, hoje de manhã, perto da hora do almoço.
ESTAS PRIMEIRAS CENAS, AGITADAS E CONTUNDENTES, FUNCIONAM COMO UM
PRÓLOGO DESTA ESTRANHA ESTÓRIA. AGORA CAÍMOS NUM CLIMA "REAL".
CENA 5: ESCRITÓRIO DA FUNDAÇÃO
ESCRITÓRIO LUXUOSO DE UMA FUNDAÇÃO CULTURAL.
AQUILES, UM DOS DIRETORES, CONVERSA COM RODRIGO E COM SEU MELHOR AMIGO, RICARDO.
RODRIGO Não quero mais escrever coisas novas, entende, pelo
menos por enquanto. Compilar tudo que já escrevi é um luxo, eu
sei, mas acho que é minha hora de fazer isso.
RICARDO/PARA AQUILES/-Rodrigo faz cinqüenta anos, amanhã, o senhor
sabia?
AQUILES Não me diga! Que oportuno... Sim, porque o contrato já
está batido, dependendo apenas de detalhes... Quem sabe não
assinamos hoje na reunião de diretoria? Seria um belo presente de
aniversário. Você poderia voltar aqui as quatro? Assim
resolveríamos tudo na reunião.
RICARDO Quatro em ponto estamos aqui.
AQUILES A Fundação ficará muito honrada em publicar a sua obra
através da Lei Sarney. Quanto tempo você acha será preciso para a
compilação?
RODRIGO Largando minhas outras atividades, uns 6 meses de tempo integral. É muita coisa. Creio que pode resultar em dez volumes, contando a prosa e o teatro.
AQUILES E com toda esta produtividade, acha que vai conseguir
ficar seis meses sem ter uma idéia nova?
RICARDO ACHA MUITA GRAÇA NAQUILO.
RODRIGO Não quero mais ter idéias, já tive muitas. Dr. Aquiles,
São arquivos e arquivos de cópias que precisam ser copidescadas,
roteiros, peças que bastava atualizar para ficar bom, alguma
coisa incompleta... Me sinto como um andarilho que foi soltando
coisas na estrada. Coisas pelo caminho, recolher tudo, para
depois seguir adiante. O senhor entende?
RODRIGO Perfeitamente, bravos, coisas de escritor. E entre
esses volumes, naturalmente, está a sua biografia inédita de
Livia Santos?
RODRIGO Naturalmente.
AQUILES Isso nos interessa particularmente. ninguém fez uma
biografia decente de Livia Santos até hoje e ela foi uma figura
marcante e o senhor, tendo sido marido dela, é o único que pode
realizar a tarefa com propriedade.
SOA O INTERFONE
INTERFONE Dr. Aquiles, Dr. Albert pede para o senhor dar um
pulo na sala dele.
AQUILES Agora?
INTERFONE Disse que é urgente.
AQUILES /DESLIGANDO O INTERFONE/ Todos os assuntos do Dr.
Albert são urgentes. Mas, enfim, é o manda chuva! Me dêem licença
um instantinho. De qualquer modo estamos marcados! As quatro?/SAI.
FICAM RODRIGO E RICARDO.
RICARDO Tá na mão, camaradinha, tá na mão. Não é a toa que eu
estou te agenciando isso há mais de um ano. Quando eu agencio é
fogo.
RODRIGO Mas o que eles querem mesmo é a biografia de Livia.
RICARDO /TOMANDO UM CAFEZINHO / Isso é. Você já
devia ter completado essa biografia há muito tempo. Apesar de que
sei que é duro pra você até hoje lembrar a morte de Livia.
RODRIGO Não tenho medo da morte. A morte é uma... namorada.
Perigosa mas atraente. Que convenhamos, Ricardo, viver é ótimo,
mas também é muito cansativo. É muita angústia, muita humilhação,
muito medo. Acho que é Dostoienski, será? "O forte
de Deus não é a justiça, é a misericórdia".
RICARDO Essa é boa, é boa.
RODRIGO Viver, inclusive, é assistir, impotente, as pessoas
queridas que vão embora. Não importa o quão queridas tenham
sido... como aconteceu com a nossa Livia naquele meu outro
aniversário.
RICARDO Você nunca se conformou. Também não é para menos, era
lindo o amor de vocês. Eu também morro de saudades de Livia, ela
era uma pessoa tão alegre...
RODRIGO Não é que não me conforme. Não concordo. Livia adorava
viver. Não concordo com a morte dela, jamais concordarei. Digo
"não".
RICARDO Pra quem?
RODRIGO Pras paredes. Ainda assim é "não".
RICARDO É. É.Será que vocês estariam juntos até
hoje, se ela não tivesse morrido?
RODRIGO Não sei, provavelmente. /NUMA CONFISSÃO QUE SOA
FUNDO/Perdi Livia... para a morte. Nada mais me faria perdê la.
RICARDO Isso já é a crise dos teus cinqüenta, sabia? Eu sei, tenho cinqüenta e um. Não quer mesmo o telefone da minha analista.
RODRIGO SORRI.
RICARDO Vamos almoçar, as quatro a gente volta. Almoça comigo?
RODRIGO Não, vou almoçar em casa.
RICARDO Cintia está animadíssima com teu aniversário. E Bia
também. Ficamos lisongeadíssimos, eu e Fernanda, de você querer
comemorar com um jantar só de nós cinco. Estamos preparando
surpresas sensacionais, prepare se também.
RODRIGO Te conheço.
RICARDO Tudo bem, você e Cintia?
RODRIGO Claro, adoro ela. E é mãe da Bia, né?
RICARDO Paixão que você tem por essa filha.
CENA 5: SALA DA CASA DE RODRIGO. ESTÚDIO. INT. DIA ENSOLARADO.
BIA, UMA MENINA DE 10 ANOS, TIRANDO NO PIANO "IMAGINE", DE LENON.
ELA SENTE A CHEGADA DO PAI E CORRE PARA ABRAÇÁ LO.
BIA Mãe, pai chegou!
RODRIGO O que você estava tirando? "Imagine"?
BIA É.
RODRIGO Foi a professora de piano que te ensinou?
BIA Não, foi mamãe.
CINTIA /SAINDO DO ESCRITÓRIO DELE/ À, amor, demorou... /BEIJA
ELE/ como foi lá na fundação?
RODRIGO Está indo. Volto lá as quatro. É capaz de dar certo.
CINTIA Vai dar. Quero ver teus livros todos naquela estante.
RODRIGO /ABRINDO A PORTA DA COZINHA/ E que movimento é esse na cozinha?
EMPREGADA /PREPARANDO PASTÉIS/ Bom dia, seu Rodrigo.
CINTIA Estamos começando a preparar o jantar.
RODRIGO Não quero festa. Coisa simples, nós, Ricardo e
Fernanda.
CINTIA É simples. Um festão simples.
RODRIGO /VENDO UMA CAIXA/ E isso aqui, o que é?
BIA TENTA CHAMAR A ATENÇÃO PRA ELE NÃO VER A CAIXA.
CINTIA Não seja bisbilhoteiro, vem. Nada que você tenha a ver
com isto. /LEVA ELE PELA MÃO/ Vem ver o que eu fiz no escritório,
uma coisa que eu pus lá. /LEVA ELE ATÉ O ESCRITÓRIO/
CENA 6: ESCRITÓRIO DE RODRIGO. ESTÚDIO. INT. DIA
SOBRE A MESA DE TRABALHO DELE, UM VASO COM UMA ROSA BRANCA.
RODRIGO Uma rosa branca?
CINTIA Não parece uma rosa branca?
BIA Mamãe leu no jornal de um escritor que todo dia a mulher
bota uma rosa branca na mesa dele. E resolveu imitar.
CINTIA /TENDO DE CONFESSAR/ Garcia Marques.
RODRIGO Vocês são as minhas rosas brancas./OLHANDO A AGENDA/
Alguém telefonou pra mim?
CINTIA Que eu saiba não, mas eu estive a manhã inteira na rua,
fazendo as compras do jantar. /INDO ATÉ A COZINHA/ Maria José,
alguém telefonou para Rodrigo?
MARIA JOSÉ /DA COZINHA/ Uma porção de gente! Telefonou seu
Mota, da televisão, aquele que toca sempre... Telefonaram do
jornal pra saber se vai renovar a assinatura... e uma dona Livia.
RODRIGO Livia de quê? /VAI ATÉ A PORTA DA COZINHA/
MARIA JOSÉ Não falou não senhor. Mandou só dizer que era a
Livia que tinha telefonado e que ia telefonar de novo as duas
horas. Falei que as duas horas o senhor já estava em casa.
RODRIGO Não conheço nenhuma Livia. Quer dizer...
ELE E CINTIA SE ENTREOLHAM E SORRIEM DO QUE FOI DITO.
MARIA JOSÉ/FAZENDO PASTÉIS/ Vai telefonar depois das duas.
FUSÃO.
CENA 7: SALA DE RODRIGO, MOMENTOS MAIS TARDE. INT. DIA
VEMOS ELE, CINTIA E BIA, ALMOÇANDO E CONVERSANDO. MAS NÃO OUVIMOS
O DIÁLOGO, MÚSICA CLÁSSICA, EMOCIONADA.
NARRAÇÃO DE RODRIGO /INTENSO INTROVERTIDO/ Foi engraçado ouvir aquilo: "Livia telefonou". Como se pudesse ser verdade, como se
Livia não tivesse morrido há catorze anos atrás, no dia do meu
aniversário. Foi engraçado...
INSERT VIOLENTO, A BATIDA DO CARRO. A CHUVA. LIVIA MORTA NO VOLANTE. UM JORNAL ONDE SE LÊ: "MORTA ATRIZ DE TV", O GRITO.
VOLTAMOS A VER O PLANO COTIDIANO DA MESA, CÂMERA GIRANDO.
NARRAÇÃO DE RODRIGO Eu, Cintia e Bia, nós três na mesa, como
fazíamos todos os dias, naquele pequeno paraíso que havíamos
criado para nós três e onde Livia, amada Livia, não tinha nunca
existido.
ELE OLHA O RELÓGIO.
NARRAÇÃO DE RODRIGO Um tremor inconfessável, leve profundo,
sacudia meu corpo da cabeça aos pés, sem que ninguém percebesse.
CENA 8: ESCRITÓRIO DE RODRIGO
A MESA, A ROSA BRANCA, O TELEFONE. TOCA O TELEFONE.
CENA 9: COZINHA
MARIA JOSÉ /NO FOGÃO/ Atende aí, faz favor, que eu tô no fogão.
CENA 10: SALA DE RODRIGO
RODRIGO Deixa que eu atendo, já acabei de comer.
CENA 11: ESCRITÓRIO DE RODRIGO
ELE ENTRA LÁ E ATENDE. CÂMERA GIRA LENTA AO REDOR DELE. POR UM MOMENTO NINGUÉM FALA NADA DO OUTRO LADO.
CENA: 12 BAR À BEIRAMAR, EXT. DIA
É UM BAR COM UMA VARANDA QUE DÁ PARA O MAR, NUM ANDAR ALTO DE COPACABANA.
UMA MULHER AO TELEFONE. DE INÍCIO NÃO VEMOS SEU
ROSTO, EMBORA O PLANO PRÓXIMO. É LIVIA.
LIVIA /EMOCIONADA/ Alô, Rodrigo? Sou eu, Livia. Imagino que
seja difícil para você falar comigo. Depois de tanto tempo e na
circunstância em que estamos.
AGORA VEMOS O ROSTO: É LIVIA. TALVEZ UM POUCO DE VENTO NOS CABELOS. FORA DISSO, NENHUM MISTÉRIO. FORA AQUELES QUE VÊM DA EMOÇÃO.
LIVIA Eu vim pra ter ver. Quero te ver.
RODRIGO /SEM SABER O QUE PENSAR/ por favor, se isso é uma
brincadeira...
LIVIA Você não reconhece minha voz?
SABEMOS QUE ELE RECONHECE
LIVIA Sabe onde estou? Aqui, no bar onde a gente vinha sempre,
lembra? "Aquele marzão lá embaixo, que não fica quieto". Você
pode vir cá agora me ver? Eu não tenho muito tempo.
RODRIGO Como você pode saber disso tudo?
LIVIA Sou eu, Rodrigo. Eu, Livia. Tente acreditar. Venha. Eu
vou estar aqui te esperando /DESLIGA/.
CÂMERA GIRA AO REDOR DELE, LENTAMENTE. ELE IMÓVEL, COMO SE O TEMPO TIVESSE PARADO.
FIM DO BREAK.
SEGUNDO BREAK PARTE DOIS
CENA 1: ESCRITÓRIO DE RODRIGO.
CONTINUAÇÃO DA CENA ANTERIOR.
A CÂMERA GIRA AO REDOR DELE, LENTA, COMO SE O TEMPO TIVESSE PARADO. ACABA SOBRE O RETRATO DE LIVIA.
NARRAÇÃO DE RODRIGO Eu sabia que não podia ser ela, mortos não
telefonam na hora do almoço. No entanto era sua voz, o jeito de falar e mais que isso era o amor que nós tínhamos ali, de repente, no telefone.
Meu tremor interno transformou se numa saudade imensa, que curvou
meu corpo.
ELE SE CURVA. A IMAGEM SE CONFUNDE. ELE LEMBRA A MORTE DE LIVIA.
CENA 2: ESTÚDIO. UM FUNDO DE PAREDE.
REPÓRTERES ENTREVISTAM ELE, DEPOIS DA MORTE DE LIVIA. RODRIGO
ESTÁ ABATIDO, SOFRIDO, SOFRENDO, DE VEZ EM QUANDO UM FLASH. OS
REPÓRTERES NÃO DEVEM APARECER, SOMENTE SUAS VOZES. É APENAS UM
PLANO DE RODRIGO CONTRA A PAREDE (É ASSIM QUE ELE SE LEMBRA/AS PERGUNTAS SÃO ÁGEIS, UMA ATRÁS DA OUTRA.
VOZ DE REPÓRTER O senhor era marido dela?
RODRIGO Estávamos juntos há alguns anos.
VOZ DE REPÓRTER Quantos?
RODRIGO Três. Três.
VOZ DE REPÓRTER Quando o senhor a conheceu ela já era atriz de
cinema e TV?
RODRIGO Estava começando.
VOZ DO REPÓRTER Como o senhor explica a rápida popularidade que
ela alcançou?
RODRIGO Não sei explicar. Livia tinha muito talento e todo mundo gostava dela.
VOZ DE REPÓRTER Verdade que o senhor ia dirigir um filme com
ela.
RODRIGO Sim, é verdade.
VOZ DE REPÓRTER Pretendiam casar.
RODRIGO NÃO RESPONDE, NÃO AGUENTA MAIS.
VOZ DE REPÓRTER O senhor conseguiu sair pela porta do carro, no
momento do acidente, como foi isso.
RODRIGO NÃO RESPONDE
VOZ DE REPÓRTER Livia Santos era uma pessoa encantadora, uma
espécie de namorada do Brasil. Fale sobre isso. Verdade que é
hoje seu aniversário?
RODRIGO NÃO RESPONDE
VOZ DE REPÓRTER Neste momento, qual seu desejo?
RODRIGO NÃO RESPONDE
CENA 3: ESCRITÓRIO DE RODRIGO / CONTINUAÇÃO DA CENA 1/
RODRIGO DIANTE DO RETRATO DELA, COMO VIMOS NO INÍCIO.
NARRAÇÃO DE RODRIGO Eu queria morrer, foi só o que eu quis,
durante muito tempo. Morrer no lugar de Livia.
PLANO GERAL DO ESCRITÓRIO. ELE PEGA UM PALETÓ FORA DE SI PASSA PELA AMPULHETA QUE ESTÁ SOBRE A MESA, COM A ROSA BRANCA. E SAI PELA PORTA DOS FUNDOS. ENQUANTO ISSO.
NARRAÇÃO DE RODRIGO Aquele telefonema somente poderia ter vindo
de alguém que nos conheceu muito bem. De alguém que me odeia. Era
preciso que eu fosse lá. Naquele mesmo bar onde nos amamos tanto
e onde eu nunca mais tinha voltado. Livia tinha me chamado, eu
tinha de ir.
CENA 4: CARRO. EXTERNA DIA.
RODRIGO GUIA O CARRO, OBSTINADAMENTE, ENQUANTO GUIA LEMBRA OUTRA VEZ QUE ESTEVE DENTRO DE UM CARRO, COM LIVIA.
CENA 5: CARRO DE LIVIA. EXTERNA NOITE. CHUVA INTENSA.
RODRIGO Não quero festa nenhuma. quero ficar com você o dia
inteiro e só. Vamos ao cinema de tarde, é isso assim quero
comemorar meu aniversário.
LIVIA Não senhor, vamos chamar o amigos, quero dançar,
aniversário é pra comemorar meu Deus, que chuva é essa de
repente?
RODRIGO ESTÁ QUINZE ANOS MAIS JOVEM, LIVIA É CONFORME A VIMOS.
TÊM A ALEGRIA E A VITALIDADE DOS APAIXONADOS. CHOVE MUITO, A VISIBILIDADE É MÁ.
RODRIGO Cuidado aí que hoje é sábado e tá todo mundo bêbado a
essa hora. Esse teu pára brisa não está limpando direito.
LIVIA Não fala mau do meu carrinho, que eu acabei de comprar
ele. E com meu dinheirinho, ganho com meu trabalhinho. O nome
dele é Mickey.
VEMOS O CARRO DE FORA, ANDANDO NA CHUVA. É UM VOLKS NOVO (DE 15 ANOS ATRÁS). É NECESSÁRIO PARA A NARRATIVA QUE SE DEFINA O CARRO.
CHOVE MUITO.
RODRIGO Cuidado assim mesmo.
LIVIA Tô indo devagar, tudo bem.
RODRIGO Lá em São Paulo eu decidi que minha próxima peça é com
você representando. Se bobear eu até dirijo. Pensei um personagem
ótimo pra você.
AGORA O DIÁLOGO EM CLOSES
LIVIA Será que eu me dou bem no Teatro? TV e cinema eu me viro,
mas Teatro é outra coisa.
RODRIGO Vai ser uma maravilha.
LIVIA Como chove! Chuva de verão. Não vejo nada, sabia?
RODRIGO Para aí que eu pego a direção.
LIVIA Precisa não. Quero saber é desse personagem...
RODRIGO /ESQUECENDO O PERIGO/ É uma mãe solteira. Uma mãe
solteira que tem uma filhinha e que vive muito bem com ela,
sozinha, sem homem nenhum. Só não sei se é filhinha ou
filhinho...
LIVIA Que é isso? Um personagem ou uma indireta?
RODRIGO /VENDO/ Cuidado que vem um louco aí meio na contramão.
LIVIA Onde é que esse louco pensa que vai?
RODRIGO /NUM GRITO/ Cuidado, está derrapando.
O OUTRO CARRO VEM EM CIMA DELES. CHOQUE. VIOLÊNCIA. RODRIGO SALTA PELA PORTA NUMA FRAÇÃO DE SEGUNDO. EXPLOSÃO. FOGO.
LIVIA NO CARRO, DESMAIADA E FERIDA. RODRIGO DESMAIADO NA RUA. FARÓIS.
CHUVA.
VOLTA PARA ELE NO CARRO DELE, INÍCIO DO FLASH BACK, SÓ PARA FECHAR.
(INSERT DA CENA 4)
CENA 6: SALA DE RODRIGO
CINTIA ESTÁ VINDO ABRIR A PORTA. CHEGANDO RICARDO E SUA ESPOSA
FERNANDA, QUE AINDA NÃO CONHECÍAMOS. SÃO TODOS MUITO AMIGOS.
RICARDO VEM CHEIO DE EMBRULHOS, FERNANDA TAMBÉM SÃO COISAS PARA
A FESTA DE DE NOITE.
RICARDO Pronto, cheguei. Olha aí, você guarda isso aqui na
cozinha. E eu trouxe também as lâmpadas para os refletores
vamos fazer uma sucessão hoje de noite.
FERNANDA Vim te ajudar aí na cozinha. /BEIJA CINTIA.
CINTIA Fala baixo, senão ele escuta.
RICARDO /BAIXO/ Está no escritório?
CINTIA Desde a hora do almoço.
RICARDO Então vamos tirar ele de lá, que são quase três horas e
eu quero chegar na fundação meia hora antes.
CENA 7: ESCRITÓRIO
RICARDO ENTRA Lã, MAS O ESCRITÓRIO ESTÁ VAZIO. VOLTA A SALA
CENA 8: SALA E COZINHA
RICARDO No escritório não está não.
CINTIA Não está? Rodrigo! Só se ele saiu pela porta dos fundos,
pra comprar cigarros ou coisa assim esquisito, ele sempre
avisa.
RICARDO Se não chegar dentro de cinco minutos, deixo ele aí e
vou na frente atrasado é que eu não chego. Cintia, eu sabia que
eu ia resolver esse assunto da fundação através de amigos que eu
tenho lá. Não tenho nada a ver com isso, não sou agente do teu
marido, sou amigo de infância. Mas se eu fôsse, ele estava rico!
BIA /NA COZINHA/PREPARANDO O BOLO COM A EMPREGADA/ Mãe, só tem 36 velas azuis. Vou ter que misturar com as que sobraram do meu aniversário, mas são cor de rosa.
RICARDO /ENTRANDO COM A CARA LÁ, COM NARIZ DE PALHAÇO/ Tudo pronto para a apresentação desta noite, papel decorado?
BIA /RINDO/ O senhor vai usar esse nariz, tio?
RICARDO Embora seu pai não mereça tanto: quedê ele? Se ele se
atrasar, mato ele diante da diretoria.
CENA 9: EXTERNA, BAR A BEIRA MAR
UM CARRO SE APROXIMA, CARRO DE RODRIGO, PLANO GERAL DE CIMA.
MÚSICA CLÁSSICA, APAIXONADA.
RODRIGO SALTA DIANTE DO BAR E HESITA POR UM INSTANTE. A IMAGENS E TURVA, FLASH BACK.
CENA 10: EXTERNA, NOITE, BAR A BEIRA MAR/INTERIOR DO BAR
Obs.: Pode ser estúdio, talvez.
... LIVIA ESTÁ NUM CANTO DA VARANDA DO BAR, DE COSTAS.
RODRIGO (MAIS JOVEM) ENTRA PROCURANDO ELA, ACHA.
RODRIGO Meu amor...
LIVIA /COMO SE QUISESSE JÁ HÁ ALGUM TEMPO DIZER EXATAMENTE AQUILO/Te amo também.
BEIJAM SE COM SOFREGUIDÃO.
RODRIGO Vinha pensando pela rua...
LIVIA Eu também esta pensando...
OS DOIS ... te amo.
RIEM, BEIJAM SE
NUM CANTO DO BAR, DISTANTES, VEMOS OUTRO CASAL
LIVIA Devem achar que nós somos malucos.
RODRIGO Somos. Pra estar nessa paixão há três anos.
LIVIA /SEMPRE ABRAÇADA NELE/ Você está proibido de viajar. Fico
com muita saudade.
RODRIGO Foi só uma semana. Afinal a peça é minha, eu tive de ir
São Paulo não é tão longe.
LIVIA Pra mim só não é longe quando eu fico abraçada.
RODRIGO Da próxima vez você vem comigo.
LIVIA Só não fui porque eu tinha gravação./ OLHA O RELÓGIO/ Teu
aniversário é daqui a quinze minutos. Se você não viesse passar a
meia noite comigo eu ia chorar, sabia?
RODRIGO Peguei o último avião, dei sorte. Quando eu saltei o
teto fechou, vai chover. Vamos casar? foi o que eu pensei no
avião. Ficar juntos? Pra sempre?
LIVIA Pra sempre.
BEIJAM SE APAIXONADAMENTE.
FUNDE.
CENA 11: BAR A BEIRA MAR. EXTERNA DIA.
RODRIGO ESTÁ COMO DEIXAMOS, DIANTE DO BAR. ENTRA NUM ÍMPETO. O BAR ESTÁ VAZIO. ELE PROCURA ALGUÉM. DESISTE, RESOLVE IR EMBORA,
MAS LEMBRA SE DA VARANDA, DA AMURADA. VAI Lã.
... NA AMURADA Hã UMA MULHER, EXATAMENTE COMO VIMOS NA RECORDAÇÃO
ANTERIOR. ELE SE APROXIMA, ENTRE O MEDO E A NECESSIDADE DE SABER QUEM É.
ELA SE VOLTA.
É LIVIA.
ELE SE APROXIMA. MUITO LENTAMENTE, TOCA ELE.
RODRIGO RECUA INSTINTIVAMENTE.
RODRIGO É você?
LIVIA Sim, sou eu.
RODRIGO Enlouqueci? Não pode ser você. Você... morreu
LIVIA Eu morri.
RODRIGO Mas está aqui. De verdade?
LIVIA Estou. Vim te ver.
AMBOS ESTÃO MUITO EMOCIONADOS. É UM REENCONTRO DESESPERADAMENTE
ANSIADO POR AMBOS. NENHUMA FANTASMAGÓRA, NADA DE IRREAL.
RODRIGO Não compreendo.
LIVIA Você deve aceitar. Não posso responder suas perguntas.
Como é bom te ver de novo.
ELE AVANÇA PARA ELA. TOCA EM SEU ROSTO. ESTREMECE. SEM QUE POSSAM CONTROLAR, OS DOIS SE ABRAÇAM E SE BEIJAM. CÂMERA GIRA
RODRIGO Mas como isso pode estar acontecendo? É um sonho? Um
delírio? Eu morri também?
LIVIA Não me olhe como se eu estivesse morta. Hoje estou viva,
pra você. E tenho pouco tempo. Muito pouco tempo.
RODRIGO Quanto?
LIVIA Não posso responder. É uma felicidade... podermos nos ver
de novo não basta?
RODRIGO Eu casei de novo. Quando você... foi embora, eu também
quis morrer. Não vi sentido na vida por muito tempo. Depois
apareceu Cintia e ... Tenho uma filha, chama se Beatriz.
LIVIA Isso não me importa.
BEIJAM SE DE NOVO. AGORA NÃO É MAIS O BEIJO APAIXONADO E SIM AQUELE OUTRO, MAIS CUIDADOSO E INTENSO, DO RECONHECIMENTO QUE TRAZ A AMBOS UMA ENORME EMOÇÃO.
DE REPENTE RODRIGO SE AFASTA DELA
RODRIGO Não. Eu não posso ficar aqui. Eu não devo. Não está
certo...
LIVIA Você só vai ficar se você quiser. Se quiser muito / BAIXA
OS OLHOS COM UMA LÁGRIMA.
RODRIGO HESITA MAS FOGE DE Lã. CORE, NÃO QUER OLHAR PARA TRÁS.
LIVIA FICA NA AMURADA, CÂMERA SE AFASTANDO DELA.
FIM DO BREAK
3º BREAK TERCEIRA PARTE
CENA 1 PORTARIA DO APARTAMENTO DE RODRIGO
A CÂMERA VEM, PRÓXIMA E AGITADA, ACOMPANHANDO ELE. ELE ENTRA NA
GARAGE, COM O AUTOMÓVEL, A CÂMERA ACOMPANHA ATÉ O ELEVADOR, NUMA
CÂMERA QUE CHEGA AO CLOSE E AO PLANO GERAL. ENQUANTO ISSO,
NARRAÇÃO DE RODRIGO.
NARRAÇÃO DE RODRIGO Eu precisava voltar para casa. Eu precisava
ver Cintia, ver Bia, as cadeiras, as paredes da minha casa. Para,
através elas, ter alguma certeza de não ter enlouquecido. Que
pode fazer um homem quando pensa que está louco? Sair gritando e
correndo ele não pode: a loucura corre junto e grita mais alto
ainda. Ele tem de ter coragem e aceitar a loucura como parte de
sua lucidez enquanto isto fôr suportável.
CENA 2 SALA DA CASA DE RODRIGO. ESTÚDIO, INT. DIA.
ELE ABRE A PORTA, CINTIA VEM CORRENDO ATÉ ELE.
CINTIA Meu Deus, que bom que você está aqui? Que que houve? Que
aconteceu? Já te telefonaram dez vezes, fiquei aflitíssima. Como
você está pálido...
RODRIGO Quem me telefonou?
CINTIA O pessoal da fundação, claro! Você não foi na reunião!
RODRIGO /LEMBRANDO AGORA/ É, é verdade. Não fui.
CINTIA Mas por que? Era importantíssimo. A diretoria estava
toda lá, te esperando pra resolver. O Ricardo está segurando
eles, quer que eu toque pra lá pra você falar?
RODRIGO Não. Eu não vou conseguir falar com ninguém.
CINTIA /COMPREENDENDO QUE É UMA SITUAÇÃO GRAVE/ Então vem.
Senta. Se você não foi, foi porque não pôde. Quer um copo d'água?
Um uisque?
RODRIGO NÃO RESPONDE NADA.
CINTIA /AJOELHANDO DIANTE DELE/ Não quer me contar o que está
havendo?
CLOSE DELE. CLOSE DELA, MUITO PRÓXIMOS, COMO SE O TEMPO PARASSE.
NARRAÇÃO DE RODRIGO Resolvi não dizer... a verdade. Ela não
poderia compreender. Eu não mentia nunca para Cintia. Mas senti
naquele momento que se eu falasse... poderia perder Livia para
sempre. Eu não podia arriscar a esse ponto.
RODRIGO Tive um motivo sério, que não posso te contar.
CINTIA Se você não quiser não conta. Mas saiba que eu estou do
teu lado, seja o que fôr. Vejo na tua cara que é coisa séria, te
conheço.
RODRIGO Bia? Onde está?
CINTIA São quatro horas da tarde, Rodrigo. Ela está no colégio.
TOCA O TELEFONE
CINTIA Deve ser Ricardo. Ele está telefonando de dez em dez
minutos. Que que eu digo?
RODRIGO Diz que eu não cheguei.
CINTIA Fala com ele.
RODRIGO Não dá.
CINTIA Alô, Ricardo.
CENA 3 SALA DE ESPERA DE AQUILES, NA FUNDAÇÃO. INT. DIA.
ESTÚDIO.
RICARDO E aí, chegou? Não chegou, é? Teu marido é louco. A não
ser que tenha acontecido o carro enguiçar, ou qualquer coisa
assim. Mas nesse caso porque ele não telefona pra cá? Fiquei uma
hora lá dentro, os homens todos reunidos, olhando para minha
cara, esperando por ele trabalhei tanto pra isso, agora ele não
vem! Me põe tudo a perder...
CENA 4 SALA DE RODRIGO INT. DIA, ESTÚDIO, CONTINUAÇÃO
RICARDO CONTINUA A FALAR SEM PARAR. RODRIGO SENTADO NA POLTRONA.
CINTIA MUITO AFLITA.
CINTIA /DEPOIS DE UNS MOMENTOS/ Ricardo, espera aí um
instantinho que está tocando na porta e eu estou sozinha. Pode
ser ele ou notícia dele. /LARGA O TELEFONE VAI ATÉ RODRIGO/FALA
BAIXO PARA NÃO SER OUVIDA/ Atende lá, meu amor, não quer não?
Atende lá, dá uma desculpa. Estão todos esperando por você. O
Ricardo está histérico, fala pelo menos com ele.
RODRIGO Eu falo.
ELA ENTREGA O TELEFONE A RODRIGO
CENA 5 SALA DE ESPERA / SALA DE RODRIGO CONTINUAÇÃO
RICARDO /TELEFONE/ Meu Deus, é você! Que houve? Vem pra cá
imediatamente, depois você me explica o que houve. Acho que
consigo segurar os homens aqui até as seis.
RODRIGO Hoje não vou poder ir.
RICARDO /APOLÉTICO/ Mas como não vai poder? O que que você
quer? Que eu marque com eles pra amanhã ou pra depois da manhã?
Essa turma daí é importante! Eles demoram seis meses pra
conseguir se encontrar... e você sempre disse que esse OK é a
coisa mais importante da tua vida porque você não fala nada? É
a tua vida, não é a minha. Te espero até as seis. Dá pra você
chegar até as seis?
RODRIGO Está bem. Até as seis eu estou aí. Você não está
entendendo nada porque eu também não estou.
RICARDO Isso não interessa agora. Mas que você se prejudica se
prejudica. Não sei como é que a Cintia aguenta. Passa ela aí um
instantinho.
RODRIGO ENTREGA O TELEFONE A CINTIA.
RICARDO Olha só filha tá brabo hem? Isso é depressão. Surtar
não surta não, que não tem mais idade pra isso. Vê se você
descobre o que que houve, mesmo pra quem faz cinqüenta essa foi
de mais, se você visse a cara dos homens. E bota ele aqui no
máximo até quinze pra seis de qualquer jeito. /ELE FALA SE
ESCONDENDO DA SECRETARIA QUE ESTÁ EM SUA MESA. ESTRAGANDO A CONVERSA.
CINTIA Vou tentar, Ricardo. /COM PRESSA/ Deixa eu desligar que
ele saiu da sala.
ELA SAI ATRÁS DELE, EM DIREÇÃO AO ESCRITÓRIO, QUE ESTÁ COM A PORTA ENTREABERTA.
CENA 6 ESCRITÓRIO DE RODRIGO. INT. DIA.
RODRIGO ACENDEU UM CIGARRO, QUE ESTAVA PRÓXIMO A AMPULHETA. E DEPOIS OLHOU ALGUMA COISA, COMO SE TIVESSE SIDO CHAMADO. VEMOS
AGORA ELE ESTÁ DIANTE DO RETRATO DE LIVIA QUE FICA, ENTRE MUITOS OUTROS, NA PAREDE. CÂMERA SE MOVE LENTAMENTE E VEMOS QUE CINTIA
ESTÁ NA PORTA DO ESCRITÓRIO, OLHANDO SEM CORAGEM DE DIZER NADA.
CINTIA Então é isso? É Livia?
RODRIGO Como e que você sabe?
CINTIA Eu sabia antes. Você nunca esqueceu Livia de verdade,
não é assim.
RODRIGO É.
CINTIA Livia morreu, Rodrigo. Há muito tempo.
RODRIGO Será.
UM SILÊNCIO.
CINTIA /JOGANDO SE NOS BRAÇOS DELE / Eu sei que dentro de você
não, meu amor! E que hoje, no Seu aniversário, você ia se lembrar
dela, eu sabia. E está certo que seja assim. /TENTANDO ANIMÁ LO
Você quer chorar? Chorar nos meus braços? EU aguento bem algumas
lágrimas.
RODRIGO Você tem ciúme de Livia?
CINTIA Não. Como eu poderia?
RODRIGO Você teria razão, se tivesse.
CINTIA /Com emoção/ Como eu posso ter ciúme de uma pessoa
morta? Eu não a conheci. Mas ela é tão importante pra você, que
gosto dela também, acredite. Se fosse viva, tenho certeza que
seriamos grandes amigas. Ela ia gosta de mim e da Bia, tenho
certeza.
RODRIGO Creio que sim.
OBS ESTE É UM DIÁLOGO ESTRANHO, COMO O LEITOR JÁ PERCEBEU.
AMBOS FALAM DA MESMA COISA, DE LIVIA. MAS FALAM DE COISAS
DIFERENTES PORQUE PARA CINTIA, LIVIA ESTã MORTA. E PARA RODRIGO,
ESTÁ VIVA.
CINTIA Você ainda ama ela?
RODRIGO Amo. Muito.
CINTIA Você queria ter morrido também. Não é assim? RODRIGO
Teria sido mais simples.
CINTIA Valeu a pena ficar vivo? Valeu a pena sobreviver sem
ela? Essa é a pergunta que você tem de se fazer.
RODRIGO Se eu tivesse morrido também, não teria te conhecido...
CINTIA Nem Bia existiria.
RODRIGO Isso um mistério.
CINTIA O que?
RODRIGO Durante muito tempo sofri com a morte de Livia...
porque não podia suportar a idéia das coisas que esta estava
deixando de viver. Essa era minha verdadeira dor. Mais que a
falta que ela me fazia. Toda vez que via um filme que eu sabia
que ela ia gostar, ou uma música, ou uma festa, ou conhecia
alguém ou alguma coisa que eu sabia que ia ser importante pra ela
... meu coração partia de dor. E agora você me diz que Bia não
teria talvez vivido a vida dela, e os prazeres dela... se Livia
não tivesse morrido. É uma compensação. Uma misteriosa e cruel
compensação.
CINTIA /COM A DUREZA DE QUEM AMA/ Sem dúvida. É!
RODRIGO /MAIS CALMO/ Cintia, eu hoje vivi ... uma estranha
experiência. Não sei. Não te conto... porque é um segredo meu,
que só faz sentido pra mim.
CINTIA Você tem direito a teus segredos. Não quero saber o que
é.
RODRIGO É alguma coisa que bota diante de mim uma escolha que
na verdade, te confesso com vergonha, eu nunca fiz.
CINTIA Qual.
RODRIGO A escolha entre a morte e a vida.
CINTIA /TOMADA DA REVOLTA GENEROSA/ Você fez sim, ah, você fez!
RODRIGO Como é que você pode afirmar com tanta certeza?
CINTIA tenho provas! /E OLHANDO AO REDOR, ACHA E PÕE NA MÃO
DELE O RETRATO QUE ESTÁ SEMPRE NA MESA DE TRABALHO DELE: UM
RETRATO DOS 3, ELE, ELA E BIA FELIZES E CONTENTES/ Quer mais?
RODRIGO OLHA O RETRATO. SEUS OLHOS SE EMUDECEM. ELE OLHA PARA
CINTIA.
RODRIGO Estou mais calmo agora. Que bom que você existe. Deixa
eu ficar um pouco sozinho. Depois eu tomo um banho e vou
encontrar o Ricardo na fundação.
CINTIA E eu vou apanhar a Bia no colégio, já estou atrasada.
Vou rápido! Quem sabe a gente chega, você ainda está aqui.
/E ANTES DE SAIR, DA PORTA/ Posso te dizer uma coisa boba, que
você já sabe, mas que numa hora dessas é a única coisa que vale a
pena dizer?
RODRIGO FAZ QUE SIM
CINTIA Te amo. /E SAI/
CENA 7 ESCRITÓRIO DE RODRIGO. CONTINUAÇÃO. EST. INT. DIA.
RODRIGO FICA SOZINHO. A CÂMERA ANDA, SUAVEMENTE, EM TORNO DELE.
NO SILÊNCIO NASCE, DEVAGAR, A MÚSICA DELE E DE LIVIA /LIMELIGHT/.
ELE NÃO QUER OUVIR, MAS A MÚSICA TOCA CADA VEZ MAIS ALTO, DENTRO
DELE, ATÉ SE TORNAR ENSURDECEDORA. ELE SE LEVANTA DE UM SALTO,
FAZENDO A MÚSICA CESSAR. MAS NESSE MOMENTO TOCA O TELEFONE.
RODRIGO ATENDE.
CENA 8 QUARTO DE HOTEL / ESCRITÓRIO DE RODRIGO. EST. INT. DIA
A CÂMERA GIRA LENTAMENTE, NO QUARTO DE HOTEL, COMO FEZ NO
ESCRITÓRIO. LIVIA ESTÁ Lã, FALANDO NO TELEFONE.
LIVIA Rodrigo? Sou eu. Você fugiu de mim. Por que você fugiu de
mim? Não vim para te fazer mal, não quero te fazer mal / ELA ESTÁ
MUITO EMOCIONADA/ A meia noite é seu aniversário, eu tenho pouco
tempo, muito pouco. Vou te dizer onde eu estou. Vem me ver agora.
Estou... no nosso hotel. No nosso quarto de Hotel. Parece o
mesmo, embora tenha se passado tanto tempo, desde que estivemos
aqui. Você vem me ver?
CLOSE DELA
Estou viva, Rodrigo. Um dia na vida. Depois, ontem e amanhã, pra
você e pra todo mundo, eu estarei morta, pra sempre. Mas hoje
estou te esperando. Sei que talvez eu não tenha o direito de te
pedir pra vir. Mas sei também que você somente virá... se quiser.
Tenho muita saudade. Saudade. De nós. É só isso.
RODRIGO /DEPOIS DE UM MOMENTO/ Eu vou, Livia. Amada Livia,
Livia meu grande amor. Meu lugar é aí, eu vou.
DESLIGA O TELEFONE, FORA DE SI, PEGA O PALETÓ SOBRE A MESA E SAI.
A PASSAGEM DO PALETÓ DERRUBA A AMPULHETA, CUJA AREIA SE DERRAMA.
FIM DO BREAK
QUARTO BREAK QUARTA PARTE
CENA 1 RUA DOS MOTÉIS. ENTARDECER. EXTERNA.
A TARDE CAI, COM O SOL PODEROSO NO HORIZONTE. A BOCA DO TÚNEL DA
BARRA. RODRIGO EM SEU CARRO TOMA A DIREÇÃO DOS MOTÉIS. NA RUA DOS
MOTÉIS OS LUMINOSOS COMEÇAM A SE ACENDER.
FUSÃO.
CENA 2 QUARTO DE MOTEL. INTERIOR NOITE.
A MÃO DE RODRIGO BATE NA PORTA. DEPOIS ELE PASSA MÃO NO ROSTO.
TRÊMULO. ELE TEME MUITO, E AO MESMO TEMPO DESEJA MUITO, O QUE VAI
ENCONTRAR ALI.
A MÃO DE LIVIA ABRE A PORTA.
ELE A VÊ, BEM VISTO. SORRI, ENTRA NUM ÍMPETO.
ESTÃO AGORA UM DIANTE DO OUTRO.
RODRIGO Então é verdade.
LIVIA É.
RODRIGO É mesmo você.
LIVIA Como antigamente.
A IMAGEM SE TURVA E SE TRANSFORMA NUM FLASH BACK
CENA 3 QUARTO DO HOTEL. ESTÚDIO. DIA
A LUZ DO DIA ENTRA PELA JANELA, LIVIA ABRE AS CORTINAS NUM
MOVIMENTO ALEGRE, DEPOIS BEIJA ELE. AMBOS SÃO DEZ ANOS MAIS
JOVENS, ACORDARAM FAZ POUCO.
LIVIA /ALEGRE/ Há quantos dias estamos neste quarto de Hotel?
Nós vamos entrar para o livro Guiness de recordes. Ontem eu fui
gravar mas voltei correndo, lembra? Foi ontem?
RODRIGO /DEBAIXO DO CHUVEIRO OU LAVANDO O ROSTO/ Hoje de tarde
tenho de ir trabalhar, juro. Não posso mais enganar o pessoal da
redação. Ontem eu disse que estava gripado, anteontem eu disse
que tinha piorado da gripe acho que eles vão ficar preocupados.
BEIJAM SE, CHEIOS DE DESEJO E VITALIDADE.
LIVIA Há quanto tempo nos conhecemos?
RODRIGO Não sei. Mas é o mesmo tempo que não desgrudamos um do
outro.
LIVIA Não vou sair desse quarto, até me expulsarem. Não é todo
dia que namoro um escritor. Acho tão romântico!
RODRIGO Escritor principiante, desempregado e incompreendido.
LIVIA Não sei se por falta ou por excesso de talento! RODRIGO
Palhaça!
LIVIA Palhaça não, atriz. Atriz de televisão. Quer dizer, se
confirmarem meu papel na novela. /EXAUSTA/ Ah, meu Deus, como fiz
charme em todas as direções pra conseguir esse papel!
RODRIGO /EM PÂNICO O anúncio que você vai gravar não era as
oito hoje?
LIVIA Oito da noite! Ainda dá tempo. Que horas são?
RODRIGO /PEGANDO O RELÓGIO/ Não! Ainda é cedo. Já estou com o
figurino na maleta, não tem problema.
RODRIGO Que figurino?
LIVIA Uma casaca de Carlitos vou fazer o anúncio vestida de
Carlitos, originalíssimo, mas sabe como eles são. /MOSTRA A
CASACA/ Feita sob medida pra mim, devo estar ficando
importantíssima.
RODRIGO Bota. Bota que eu quero ver.
LIVIA Agora?
RODRIGO Se for amanhã não dá tempo.
LIVIA Você manda, eu obedeço. /VAI PONDO A CASACA/.
RODRIGO /PREOCUPADO/ Que horas você disse que eram? Me lembrei
que é hoje que eu tenho de ir na TV, falar com o cara que está
coordenando os textos...
LIVIA /INDO/ Deixa eu ver no relógio.
RODRIGO Deixa, ainda é cedo.
LIVIA Onze e meia.
RODRIGO De qualquer jeito o encontro era as onze. Quarta as
onze.
LIVIA /SE VESTINDO BOTANDO UM BIGODE/ Mas hoje é terça.
RODRIGO Terça? Como, se ontem foi domingo? Me dá outro beijo.
/VAI ATÉ ELA MAS PÁRA, SURPRESO/ Meu Deus, você está linda! Se
ele estivesse aqui, o Carlitos botava você no lugar dele. Juro,
você está linda.
AGORA VEMOS LIVIA, AGORA A CÂMERA MOSTRA. ELA ESTÁ FANTASIADA DE
CARLITOS. NUMA CASACA CHARMOSA, QUE DEIXA AS PERNAS DE FORA.
BIGODINHO, FAZENDO UMA POSE. TOCA O TEMA DOS DOIS: "LIMELIGHT". O
CLIMA FICA SUAVE, APAIXONADO.
RODRIGO Acho que meu caso com você Livia Santos, é um exemplar
típico e nítido de amor à primeira vista.
ELA PISCA PARA ELE, IMITANDO CARLITOS.
LIVIA /BEIJANDO ELE/ "Romeu e Julieta", 2º ato. Fiz Julieta
quando estava na escola sabia?
RODRIGO /OLHANDO O RELÓGIO Acho que não vamos conseguir nunca
sair desse quarto. Está evidentemente encantado. As portas dão a
impressão de portas, mas não abrem. Nunca vamos nos separar.
LIVIA /FAZENDO ADEUSINHO DE VAUDEVILLE E SUMINDO NA PORTA DO
BANHEIRO, COMO SE SOME NUMA COXIA/ Nunca vamos nos separar.
CORTE VIOLENTO NA IMAGEM
CENA 4 RUA DOS MOTÉIS. NOTURNO. CHUVA: A CENA DO DESASTRE,
FLASH BACK.
AGORA VEMOS A CENA MAIS VIOLENTA, COM MAIS DETALHES. O FOGO, O
SANGUE, AS LUZES RODAM. ELE PULANDO PARA FORA DO CARRO E ROLANDO
NA RUA. ELA ENSANGÜENTADA DENTRO DO CARRO.
FUSÃO...
CENA 5 QUARTO DO MOTEL, CONTINUAÇÃO DA CENA 2
ELE DIANTE DELA, VOLTANDO DA RECORDAÇÃO
RODRIGO Então é verdade?
LIVIA É.
RODRIGO É mesmo você?
LIVIA Como antigamente.
RODRIGO /NUM GRITO/ Então me diz COMO É DO LADO DE Lã! Me diz,
você tem de me dizer...
LIVIA /FUGINDO, PROTEGENDO SE/ Não, não posso!
RODRIGO /ABRAÇANDO ELA FORTE/ como pode isso acontecer, se você
está morta, é Livia como pode estar assim nos meus braços...
/BEIJA ELA/ Sua boca, sua boca, é sua boca... e seu corpo, que
saudade, eu me lembro tanto, do seu corpo...
SE ABRAÇAM, SE RECONHECEM, NUM ENCONTRO POR MUITO TEMPO ANSIADO.
RODRIGO Me diz, me diz, e fala de você, como você veio, onde
você estava...
LIVIA /LOUCA DE DESEJO, PERDIDA NOS BEIJOS/ Não me pergunta
mais, senão eu vou embora. Me beija, me abraça, eu também tenho
muita saudade, amor...
RODRIGO Amor...
MÚSICA CLÁSSICA, QUASE SOLENE, PORÉM BELA E APAIXONADA. ELES SE
QUEREM E SE AMAM, ALI, NAQUELA CAMA DE HOTEL. A CENA NÃO PRECISA
NENHUMA NUDEZ, NENHUMA AUDÁCIA ESPECIAL. FUSÕES TALVEZ. E UMA
IMENSA PAIXÃO.
NARRAÇÃO DE RODRIGO /SOBRE AS IMAGENS DELES/ E eu amei Livia,
perdida Livia, ali naquele quarto de Hotel. O amor voltou, mais
intenso e poderoso, porque agora diante da grande dama, ela
mesma, da morte. Não havia mais nada que eu quisesse saber, e
nada mais me assustava. Não sei quanto tempo se passou, o tempo
não existia: eu e Livia num só, somente o amor existia.
FUSÃO, PASSAGEM DO TEMPO.
CENA 6 QUARTO DO MOTEL. INT. NOITE. CONTINUAÇÃO.
RODRIGO E LIVIA DEITADOS LADO A LADO, DEPOIS DO AMOR.
LIVIA Eu queria te pedir uma coisa.
RODRIGO Pede.
LIVIA Me fala da tua filha.
RODRIGO Se chama Beatriz.
LIVIA E como ela é? É alegre? É triste? Parece contigo. Quero
saber.
RODRIGO É muito minha amiga. Lá perto de onde moramos tem um
jardim com flores. Nós sempre vamos lá.
A IMAGEM TURVA E PASSAMOS A OUTRO FLASH BACK.
CENA 7 JARDIM FLORIDO. EXTERNA DIA.
CLOSE DE UM MIOSOTIS. RODRIGO MOSTRA A FLOR PARA A FILHA. BIA É
AGORA MAIS JOVEM QUE A VIMOS, 5 ANOS TALVEZ.
RODRIGO /MOSTRANDO/ Esta se chama miosotis. O nome dessa flor é
miosotis.
BIA JOVEM Miosotis.
RODRIGO Isso.
BIA JOVEM Gosto muito de flor. Os passarinhos bebem nelas, né
pai?
RODRIGO Bebem.
BIA Uma água que alimenta, né pai? É o alimento do passarinho.
RODRIGO Quem te ensinou.
BIA JOVEM A tia do colégio. Que flor você mais gosta?
RODRIGO Não sei. O cravo, talvez.
BIA JOVEM Cravo é muito bonito, também gosto. Mas a que eu mais
gosto é o miosotis.
RODRIGO Sabe, filha, quando você era pequenina, bebê ainda, eu
vi na rua um pai conversando com uma filha. Morri de inveja. Me
lembro que eu estava com pressa e voltar pra casa, pra te ver,
mas fiquei lá na rua, parado, um tempão, de longe vendo o pai
conversar com a filha. E pensando em como ia ser bom no dia em
que a minha crescesse e eu pudesse conversar com ela também.
BIA Também gosto muito de conversar com você, pai.
/BEIJA ELE/ E agora que já estou grande, vou conversar cada vez
mais.
A CENA ONDULA, FUNDE
CENA 8 QUARTO DO MOTEL. INT. NOITE. VOLTA DO FLASH BACK
RODRIGO FALA COM LIVIA, NA CAMA.
RODRIGO É assim a Bia, minha amiga.
NOTA QUE LIVIA ESTÁ CHORANDO.
RODRIGO Porque você está chorando? Por que?
LIVIA Por que eu nunca tive filhos.
LEVANTA DA CAMA E VAI SE VESTIR.
LIVIA Logo vou ter de ir embora.
RODRIGO Quero ficar com você, para sempre. Não posso te perder
pela segunda vez.
LIVIA Então fica comigo. Vem comigo. Vem comigo.
RODRIGO Pra onde?
LIVIA Pra onde eu vou. Você pode ... se quiser. Essa escolha
sempre é possível. Você quer?
RODRIGO HESITA POR SÉRIO INSTANTE (PELO MAIS SÉRIO DOS
INSTANTES). EM SUA MEMÓRIA APARECE (E, PARA NÓS, EM FUSÃO) O
RETRATO QUE ELE VIU ESTA TARDE, ELE, CINTIA E BIA.
RODRIGO /LEVANTANDO OS OLHOS/ Preciso me despedir.
BEIJAM SE, SELANDO UM PACTO.
LIVIA Volta pra casa agora. Eles estão de esperando. Eu passo
pra te apanhar.
RODRIGO /ABRAÇADO COM ELA/ Nunca vamos nos separar.
LIVIA Nunca.
PLANO GERAL DO QUARTO, ELES SE BEIJANDO.
CENA 9 AUTOMÓVEL, EXT. NOITE
ELE NO AUTOMÓVEL, INDO PARA CASA. LUZES DELIRANTES.
MÚSICA INTENSA.
CENA 10 FACHADA DO PRÉDIO DE RODRIGO. EXT. NOITE
CENA 11 SALA DE RODRIGO, ESTÚDIO. INTERIOR NOITE.
MÚSICA INTENSA, ELE ENTRA EM CASA. TODOS VEM RECEBÊ LO. CINTIA,
BIA, RICARDO E SUA ESPOSA FERNANDA. ESTAVAM AFLITOS. BIA CORRE
PARA O PAI. FIM DO BREAK
CENA 1 SALA DA CASA DE RODRIGO. ESTÚDIO. INTERIOR NOITE.
CONTINUAÇÃO DA CENA ANTERIOR.
RODRIGO ENTRA PELA CASA. ESTÁ VAZIA!
UMA VOZ NAS COSTAS DELE.
BIA Pai.
BIA ESTÁ LINDA, COM VESTIDO DE FESTA
RODRIGO Você está sozinha? Onde estão as pessoas? Sua mãe? Você
está linda.
BIA Vestido novo para o aniversário do pai. Você tem de sentar
aqui. /PUXA ELE PARA UMA POLTRONA COLOCADA NO MEIO DA SALA/ e não
pode perguntar nada.
A SALA FOI REARRUMADA, ESVAZIADA UM DOS LADOS PARECE DE ALGUMA
FORMA UM PALCO, CUJA ÚNICA PLATÉIA É A POLTRONA DE RODRIGO. ELE
OLHA TUDO SEM ENTENDER, É COMO SE O SEU DELÍRIO CONTINUASSE. Hã
DOIS OU TRÊS REFLETORES TAMBÉM POR ALI (REFLETORES, SIMPLES,
CASEIROS) E BIA VAI ACENDENDO UM A UM. A CENA É EVIDENTEMENTE
MÁGICA, EMBORA REAL, BIA PARECE UMA FADA, FAZENDO AQUILO. ENTÃO
ELA SENTA NO PIANO TOCA UMA MÚSICA ANIMADA. ENTRAM NO "PALCO",
VESTIDOS A RIGOR RICARDO E SUA MULHER FERNANDA, COMO SE FOSSEM
DOIS APRESENTADORES.
RICARDO Boa noite, caríssima platéia. Palmas, palmas! /BIA BATE
PALMAS/ Esta é uma representação improvisada, uma surpresa de
aniversário!
FERNANDA Os atores são amadores e destituídos de qualquer
talento, porém com muito amor no coração pelo aniversariante que,
aliás, é a única pessoa da platéia.
RICARDO Para nós, a casa está cheia!
BIA RIA MUITO, TAMPANDO A BOCA PARA NÃO ATRAPALHAR
RICARDO Viemos aqui contar a vida de um homem... Um homem igual
aos outros, no entanto, muito diferente. Acontece que eu o
conheço muito bem. Aguento seus defeitos e qualidades há
aproximadamente 40 anos, ele é o meu mais velho amigo... Não que
seja propriamente um velho, mas, confesso, já estamos ficando
antigos eu e ele.
RODRIGO OLHA AQUILO TUDO, COM UM SORRISO DISTANTE E UMA EMOÇÃO NO
FUNDO DOS OLHOS. ELE VEIO ALI PARA SE DESPEDIR.
FERNANDA Segundo me contaram (várias vezes, na cama, antes de
dormir).
RICARDO Fernanda, modos!
FERNANDA ... eles dois se conheceram ainda no colégio primário
num incidente digno de nota!
RICARDO De uma má nota.
FERNANDA O nosso homenageado desta noite não gostava do
professor de matemática que, segundo a lenda, era uma fera
perigosa. E ficava durante a aula jogando pequenos pedaços de giz
nas costas do professor, enquanto este escrevia fórmulas na
lousa.
BIA JOGA PEDAÇOS DE GIZ EM FERNANDO, QUE FAZ O PAPEL DO
PROFESSOR. É CLARO QUE ELES ENSAIARAM TODA ESTA BRINCADEIRA.
FERNANDO /RINDO PARA RODRIGO/ Você tinha razão, Rodrigo, ele
não entendia nada de matemática...
RODRIGO SORRI, QUASE SEM ENTENDER ONDE AQUILO VAI CHEGAR.
FERNANDA Foi quando a fera resolveu suspender a turma toda, se
o culpado não se acusasse. Rodriguinho nosso herói, que sempre
foi dado a responsabilidades sociais, levantou se disse:
BIA /COLOCANDO SE AO LADO DE RODRIGO/ Professor, eu sei quem
foi. Foi...
FERNANDA E nesse exato momento levantou se, do outro lado da
sala, meu futuro marido e fez:
RICARDO /FINGINDO DE LONGE QUE DÁ UM TIRO COM O DEDO Pá!
FERNANDA E BIA BOTAM A MÃO NO CORAÇÃO E FINGEM QUE MORREM.
FERNANDA /NO CHÃO/ Tinham combinado tudo antes da aula. É claro
que o colégio riu inteiro durante alguns anos e assim esses dois
ficaram amigos para o resto da vida. RICARDO VAI ATÉ RODRIGO,
APERTA A MÃO DELE TEATRALMENTE. DEPOIS OBRIGA O A LEVANTAR SE E
Dã LHE DOIS BEIJOS, UM EM CADA FACE.
RICARDO /PARA OS OUTROS/ Em várias ocasiões desta trajetória
foram levantadas suspeitas de homossexualismo entre os dois, mas
eram as más línguas, nunca nada ficou provado.
BIA RI MUITO. CINTIA RI TAMBÉM, ESCONDIDA NA PORTA DA COZINHA,
PREPARADA PARA ENTRAR "EM CENA". AGORA QUEM FALA É FERNANDA,
SENTANDO NO FUNDO. A LUZ MUDA SOBRE ELA (É CINTIA QUEM MEXE
NESTAS LUZES)... E SEU TOM É MAIS ÍNTIMO.
FERNANDA /COM SUAVIDADE/ Depois o tempo passou é uma mania
que o tempo tem. Nosso herói venceu muitas batalhas, empatou
algumas e por que não dizê lo? sofreu também duros revezes,
como acontece com todos os homens. A certa altura o amigo dele
/APONTA PARA RICARDO/ casou com uma Mulher formidável...
OS DOIS MIMETIZAM O CASAMENTO
RICARDO /SEMPRE PALHAÇO/ Concordo com o formidável, afinal hoje
não é dia de falar nos defeitos...
FERNANDA ... e a mulher do amigo ficou sendo grande amiga do
aniversariante herói. /VAI ATÉ RODRIGO E ABRAÇA ELE/ Gosto muito
de você, sabe. Fico muito contente que Cintia tenha arranjado um
marido tão bom parabéns, felicidades, muitos de
RICARDO /INTERROMPENDO/ Assim não vale, ela está saindo do
texto combinado, não vale. Afinal ensaiamos duas semanas.
FERNANDA /IMPLICANDO/ Se eu não tivesse casado com você, casava
com ele...
CINTIA /ENTRANDO EM CENA E CHAMANDO ATENÇÃO/ Gente, agora é a
minha vez!
ELA ESTÁ LINDA, NUM VESTIDO DE COLOMBINA.
CINTIA E depois apareceu uma moça que começou a dar em cima do
herói. Mas ela deu tanto em cima, tanto em cima foi um vexame,
um horror mas perdoem a pobre moça, ela estava
apaixonadíssima... que acabou ele se apaixonando também. Então
eles fizeram aquilo que os apaixonados fazem...
FERNANDA Quantas vezes?
CINTIA ... e a barriga dela começou a crescer, crescer... e lá
de dentro saiu uma coisa maravilhosa, que só não parece uma flor,
só não parece a lua, só não parece um passarinho, porque é mais
bonita que essas coisas todas!
ENQUANTO CINTIA DIZIA ISSO ELES ESTENDERAM UM PANO COLORIDO, BIA
SE ESCONDEU ATRÁS. E AGORA, NA ÚLTIMA PALAVRA, CINTIA SOLTA O
PANO FAZENDO APARECER BIA, NUMA POSE.
BIA CORRE E SE JOGA NOS BRAÇOS DO PAI.
BIA Pai, você é o homem mais importante da minha vida, sabia?
/BEIJA ELE/.
RICARDO /SE COLOCANDO SOLENEMENTE PARA ENCERRAR O "ESPETÁCULO"/
E hoje esses quatro personagens, ou melhor, fãs, reunem se no
aniversário do chamado herói. Ele faz cinqüenta anos! Cinco
décadas! Meio século! Reunem se para dizer que gostam muito dele,
apesar dele ser um cara complicadíssimo, um chato desvairado
SAINDO DO TEXTO/ ... que hoje me deixou numa situação
embaraçosíssima, Rodrigo, diante daquelas múmias da fundação,
azul, verde, amarelo, sem saber explicar porque você não aparecia
explicação essa que agora não tem mais nenhuma importância
porque olha aqui! /PUXA UM PAPEL E Dã PARA RODRIGO/ O contrato da
fundação, com obrigação e publicar tua obra inteirinha num prazo
máximo de seis meses. Eu disse pra eles que isso aqui era tão
importante pra você que você não tinha nem coragem de aparecer
lá. E descorri essa cascata com tanta eloqüência, que eles
mandaram o contrato assinado pra você de presente aniversário!
Incrível! Queria eu ter um amigo como eu! Quero dez por cento
hem? Da obra publicada e de toda obra futura! Alguém acha que eu
não mereço?
E AGORA ESTÃO TODOS REUNIDOS EM TORNO DELE, ESPERANDO QUE ELE
DIGA ALGUMA COISA.
RODRIGO Eu não mereço isso. Não mereço vocês. /PASSA A MÃO
SUAVEMENTE NO ROSTO DE CINTIA/ Obrigado, que mais eu posso dizer?
BIA /QUEBRANDO O CÍRCULO/ Nós não queremos que você diga nada
pai, que ainda não acabou. Ainda tem o bolo que também é
surpresa. /CARREGANDO ELE PELA MÃO/ Agora nós queremos que você
fique trancado no escritório onde você gosta tanto de ficar
trancado até a hora da gente trazer o bolo. /BOTA ELE NO
ESCRITÓRIO/ Dá licença.
RICARDO Nada de olhar pelo buraco da fechadura. /E FECHA A
PORTA/.
CENA 2 ESCRITÓRIO DE RODRIGO. ESTÚDIO INTERIOR NOITE.
ELE ESTÁ SUBITAMENTE DIANTE DO RETRATO DE LIVIA, OS OLHOS
BRILHANDO DE LÁGRIMAS. VAI ATÉ A JANELA E OLHA PARA BAIXO.
CENA 4 EXTERNA, RUA, FACHADA DO APARTAMENTO DE RODRIGO, NOTURNO
UM CARRO CHEGA NA PORTA DO PRÉDIO. É LIVIA QUEM VEM GUIANDO O
CARRO. RECONHECEMOS O MESMO CARRO NO QUAL ELA MORREU.
CENA 4 ESCRITÓRIO DE RODRIGO. CONTINUAÇÃO
RODRIGO FECHA OS OLHOS POR UM MOMENTO, NUMA DECISÃO... E SE
PRECIPITA PARA FORA DO ESCRITÓRIO, PELA PORTA OS FUNDOS.
CENA 5 PORTARIA DO APARTAMENTO DE RODRIGO, EXT. NOITE
A CENA É AGORA EM CÂMERA LENTA, MUITO LENTA, COM MÚSICA,
"LIMELIGHT". VEMOS ELE SE APROXIMAR DO CARRO, ONDE LIVIA ESPERA.
DURANTE ESTA AÇÃO / E INTERCALADA COM ELA/ VEMOS ALGUNS "INSERTS"
E INSTANTES QUE VIMOS ANTES.
INSERT 1 CENA 12 PRIMEIRA PARTE
LIVIA Sou eu, Rodrigo. Eu, Livia. Tente acreditar
INSERT 2 CENA 11 2ª PARTE
LIVIA Você só vai ficar se você quiser. Quiser muito.
INSERT 3 QUARTA PARTE CENA 8
LIVIA Vem comigo. Pra onde vou. Você pode, se quiser.
CESSA A CÂMERA LENTA. RODRIGO CHEGA NO CARRO, DEBRUÇA SE NA
JANELA. LIVIA ESTÁ Lã. OLHA PARA ELE. LINDA, AMANTE, GENEROSA.
RODRIGO Livia. Eu não vou. Decidi não ir. Te amo muito, nunca
amei ninguém como te amo. Mas não vou. Prefiro ficar. Tem muita
gente lá em cima esperando... eu tenho uma filha. Vou ficar
enquanto eu puder.
LIVIA Está bem. Adeus.
RODRIGO /SABENDO QUE É PARA SEMPRE/ Adeus.
PLANO GERAL VISTO DO ALTO DO EDIFÍCIO. MÚSICA "LIMELIGHT" LIVIA
PARTE O CARRO, RODRIGO FICA.
O CARRO SE PERDE NA ESCURIDÃO FUNDINDO PARA ... (INSERT) UMA
IMAGEM QUE Já VIMOS DE LIVIA DANDO ADEUSINHOS DE VAUDEVILLE,
VESTIDA DE CARLITOS, SUMINDO NA PORTA DO BANHEIRO.
FUNDINDO PARA LUZES, QUE SÃO AS LUZES DO BOLO DE ANIVERSÁRIO.
CENA 7 SALA DA CASA DE RODRIGO. INT. NOITE.
TODOS SE APROXIMAM DA PORTA DO ESCRITÓRIO (CINTIA, FERNANDA,
RICARDO E BIA) COM UM ENORME BOLO NA MÃO, COM CINQÜENTA VELAS.
RICARDO BATE NA PORTA, BRINCALHÃO.
RODRIGO ABRE. ELE ESTÁ Lã.
RICARDO /MOSTRANDO O BOLO/ Vamos ver, malandro, são só
cinqüenta por enquanto. Vamos ver se você ainda aguenta as
paradas.
RODRIGO OLHA TODOS, ENCHE OS PULMÕES E, EM CÂMARA LENTA, APAGA
TODAS VELAS...
ATÉ A CENA IR AO ESCURO ONDE, COM MÚSICA CLÁSSICA, CORREM OS
LETREIROS FINAIS.
A SEGUNDA CHANCE / original para TV
Domingos de Oliveira
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3 comentários:
Impossível não gostar e não imaginar as cenas! Você como sempre um gêniio, um mestre!
Me permita uma perguntas...Você escreveu esse roteiro pensando na Leila Diniz?
Beijos em você e na Priscilla!
Domingos, tenho pensado sobre o que seria a arte de hoje. Só posso defini-la como o lugar onde quero morar, onde preciso morar. Embora às vezes seja tão difícil. Me pergunto se Thomas Mann, por exemplo, não faça ciência. Você frequentou os corredores da ciência, eu frequento. Sabemos, portanto, o que é o deserto. Os seus filmes, felizmente, pude assistir com atenção: Separações, Carreiras, Amores, Feminices, Todas as Mulheres do Mundo. Pude sentir-gostá-los. São duma arte franca. Assim, pessoas que realizaram essa arte causam admiração em principiantes como eu, que almejam a arte, mas não a realizaram. Por isso, meu grande apreço pela oportunidade e estímulo que você está dando através desse blog. É algo realmente e grandemente importante para quem quer fazer arte no Brasil. Principalmente para quem ainda não fez. Não me atrevo a propor agora uma parceria, queria contudo que lesse um pequeno roteiro que escrevi e me dissesse se sente alguma coisa. Se ele te diz alguma coisa. Se não for pedir em exagero.
Jorge(jorgefilho1@yahoo.com.br)
oi! se vcs divulgam festas, deem uma olhada no blog da Chanchada - A Festa, que vai rolar dia 11 http://chanchada.wordpress.com
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