sábado, 26 de julho de 2008

PASSADO:


1958/22 anos/ durante a prova de Motores,
Faculdade Nacional de Engenharia:

Se vou ser um escritor, não sei, mas que a angústia constante e a paixão da escrita entraram em mim, disso tenho certeza. Minha inspiração vem quando chamo. A tinta azul, o papel branco... e o mundo desaparece. Somente fica comigo o que é belo ou irremediável e "minha alma se acalma nos versos que eu canto".

Um dos maiores aborrecimentos que tive aos 21/22 foi as bodas de prata de meus pais. Minha mulher, que odiava a sogra, resolveu transformar a questão de comparecer à missa das bodas numa querela religiosa radical. Os problemas, gravíssimos, eram da ordem de se sobe no altar ou se fica nos bancos da igreja, já que não acreditamos em Deus, se ajoelha com os outros ou não ajoelha etc. Incrível! Me pergunto se até hoje luto e sofro por problemas banais assim.

2/1/60. 24 anos

Tenho agora 24 anos. Este diário devia ter começado ontem. Seria mais simétrico. Para bem da verdade, devo explicar que não o fiz porque estava por demais desanimado para fazer qualquer coisa senão dormir.
No ponto final do parágrafo anterior parei e reli o que tinha escrito.
Essa atitude talvez não seja válida.
É preciso decidir o tom deste diário. É preciso resolver e declarar como e porque o escrevo.
Por que escrevo? Por várias razões. A principal é me fornecer um meio de meditação. Somente sei meditar em voz alta (evidentemente, usando um ouvinte) ou escrevendo. Poderia mesmo dizer, sem exagero, que meditar é para mim um ato anormal, ao qual a vida mais e mais me obriga. Meu estado interior natural é o absoluto vácuo.
Somente agora, com os 24 anos de idade, começo a aprender a juntar pensamentos de modo claro. Este vácuo porém é feito de caos e portanto me angustia. É preciso pensar. É preciso decidir, simplificar, metodizar. É preciso saber se sou contra ou a favor da pena de morte, se torço ou não pelo comunismo, até que ponto sou realmente um porco e, para isso, é preciso pensar.
Porque não excluo a possibilidade de outras pessoas lerem estas linhas, farei com que elas não contenham coisas por demais ligadas à minha vida íntima e sim paire no campo das idéias gerais. Outra vantagem importante das idéias gerais é obrigar-me a uma certa dignidade que me permite pensar melhor, e melhor encontrar-me. A parte de mim mais minha, aquela que se liga a meu cotidiano, ao meu passado e presente, me envergonha a tal ponto por sua fraqueza e superficialidade que não me permite falar dela. Tenho vergonha de mim? Tenho muita. É um dos meus sentimentos mais sinceros, menos intelectualizados.
Se meu diário não contém coisas íntimas, talvez não o devesse chamar de diário.
Mas se o escrevo um pouco cada dia?
Em todo caso, não chamo de diário, não chamo de nada.
Deixo em branco a linha do título, mas afinal, quero ou não ser lido? Não faço questão, a não ser por Eliana (minha mulher), é claro. Isso não impede que, em forma, eu me dirija a outros. Como já expliquei, o estilo, a dignidade.
Além do mais, não creio que esse escrito interesse a ninguém, certamente.
Ao público só se deve dar obras buriladíssimas. Assim mesmo eles não as entendem. Mostrar o meu íntimo a pessoas distantes me dá a sensação de ridículo. Eles não me conhecem, serão enganados. Não podem aquilatar o quanto eu gaguejaria para dizer essas coisas em lugar de escrevê-las, não podem saber que eu não os olharia nos olhos e, para terminar o assunto, vamos e venhamos: é ou não ridículo falar de modo firme, a não ser que se tenha morrido há ao menos um século?
Não devo porém, se o caso é psicanálise, riscar o que escrevo. Tudo deve ficar. O romântico, o dramático, o pretensioso, o falso e, assim sendo, descubro o título que faltava: Anotações sem risco, ou melhor, Anotações sem risco nem rumo.
Escrevo sem significação e canso, mas devo continuar, mesmo cansado (são 4 da manhã). Cansado, perco a pouca lucidez que tenho, fico mais ridículo ainda. Não digo nada, faço confusões. Não penso, estou cansado. Sinto dificuldade de falar.
Torno-me um imbecil. Minha boca fica mole, ensalivada como a dos imbecis. Minha cabeça, solidamente oca. Até meu sofrimento, meu querido e redentor sofrimento, até ele se amortece. Cansado, me anestesio, não sofro. Sou, mais que nunca, o porco.
Entretanto, repetindo Dostoieviski, nem um porco consegui jamais ser, tenho vocação somente. Muitas vezes - oh, quantas vezes! - quis enfrentar a porcaria, mas não consigo. Tenho em mim, também, sentimentos puros e nobres. Sentimentos ridículos, já que sou um porco, mas que me impedem de sê-lo.
Cansei, por hoje. Amanhã começo com a frase: "Sou um ingnorante", ponto que gostaria de esclarecer.

comentário feito anos depois (nota ao pé da página):

(Ou seja, eu era um menino neurótico de 24 anos, que ainda não tinha começado a viver, ou melhor, que vivia numa tormenta ridícula.
Um dia peguei um album de fotografias velhas, mergulhei nelas. Trabalhei muito e escrevi minha melhor peça, sobre minha infância ou o que fantasio dela. Chama-se "Do Fundo do Lago Escuro". Esse lapso entre os 10 anos de idade, no tempo "Do fundo ", até esses 24 anos esquisitos, também consegui contar uns pedaços. Comédia de adolescentes: "Somos todos do Jardim da Infância", depois transformado em " Era uma vez nos anos 50", depois numa quase saga panorâmica, "Os melhores anos das nossas vidas”, que em qualquer país com cinema daria um filme ótimo, à propósito - quem sabe ainda não faço? Otimismo.
Mas nem tudo eram comédias. Nesses 24 do diário acima eu já era casado e separado. Casei aos 21 e separei aos 23. Noivei aos 18 ou coisa assim. E isso é uma barra pesada que envolve meus primeiros encontros mais profundos com a Morte, o Amor e também com a Cultura, narrados na minha peça ainda inédita, mas já escrita há muito, chamada "A Primeira Valsa".




ATUALIDADES:


O show do Canequinho todo sábado. Hoje tem. Gasta um tempo enorme prepará-lo, embora não tenha importância nenhuma e nem dê dinheiro. Em tudo, sou muito organizado. Não no show. Fico em dúvidas cadentes até a última hora para descobrir o que quero cantar, qual é a hora do show, etc. Fora isso, estou absorvidíssimo na minha mais recente peça: "O Confronto", ou "Sangrenta Madrugada Sangrenta", história policial de assassinatos e outras violências, da qual cismei em fazer uma leitura amanhã de manhã. Além disso, minha secretaria está uma bagunça, não respondo emails, perco oportunidades, etc. Portanto, ainda não é tempo de anunciar o fim do mundo, mas é de parar o post de hoje.

Mais uma pequena coisa: Experimentem ver o "Era Uma Vez", por sua conta e risco. Agora não vejam o "Batman", que é um saco. Nenhum instante de poesia.

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Um comentário:

Anônimo disse...

Caro Domingos,

Que coisa boa ter encontrado seu blog. Tive contato com o seu trabalho pela primeira vez há alguns anos quando assisti "Amores" e gargalhava vendo você interpretando aquele pai, achava lindo. Faz pouco tempo que comecei a conhecer suas peças e agora isso, seus textos e memórias virtuais.É sempre muito engraçado e bonito. É muito bom te ler. Não pare.

abraços
Mariana Serra